Nos momentos em que a pequena Salomé conduz (verdadeira carga catalisadora) o filme com o seu olhar e deixa todo o mundo racional e lógico de fora, Alma Viva convoca o velho sonho de um Pedro Páramo português. O subjetivo e a alma tornam-se condutores (como eletrões difratados e loucos) fantásticos e fantasmáticos de uma féerie intravável e caiem por terra os espartilhos do argumento clássico, as dicas do guião perfeito de um génio do script doctor e a psiquiatria redutora. Bruxedos, superstições e fantasmagorias tão primordiais como incompreensíveis convivem (mesmo na posse) pacificamente com as leis e a compostura dos vivos. Nesses blocos de arrasto em que o cinema pela via ontológica e parental derrete as regras canónicas e agarra o irracional de um velho sonho de convivo entre Juan Rulfo e António Reis & Margarida Cordeiro, uma ilusão quase acabada desgarra-se na tela.
Se na mesa de montagem tivessem ficado todas as incompreensíveis divagações pelos clichés dos nossos imigrantes e das suas manias de grandezas e de confrontos sanguíneos épicos à beira da monstruosidade (as cenas da piscina e do caixão caído vêm de outro filme, talvez de Canijo), se a mão pesada dos ditos e da (não) graça desses corpos tivessem sido negados nos ensaios ou relegados a um documentário indistinto feito por alguém com muito menos alma, um outro que não tivesse demonstrado a sensibilidade aguda da abertura do filme, a sensibilidade extrema de todas as cenas entre neta e avó (Salomé a pentear uma avó já a caminho de esfriar para sempre, na cena mais bela do filme) ou as exatas deambulações perdidas, cegas e assassinas de uma máquina infante de justiça poética e demencial, teríamos Rulfo e Reis & Cordeiro em primeiro plano.
O filme ideal seria só Salomé. Somente Salomé como esse cometa intratável. Pena todo o extra-percetivo de Salomé e os planos finais que falham o objetivo transcendental e se encaminham mais para o campo publicitário, ficando longe da producente sugestão dos incêndios como mais bruxaria ou da chuva final como milagre neste vale de lágrimas em que todos estamos inundados. Ou da reportagem da retirada dos autóctones em comunhão praticamente pacificada com o melhor da estilização anterior. Mas nem todo esse peso e demagogias apagam o olhar magnífico (magnificado) e cintilante/soterrado da criança como revelação (estremecimento regressado do berço, regras da gravidade invertidas pelo irracional) que dispensa a cinefilia mal digerida e a ciência castradora.
– Quem é a Cristèle Alves Meira e qual a sua ligação a Portugal?
Nasci em França, filha de pais portugueses que emigraram nos anos 70 em busca de melhores condições de vida e para fugir a uma certa precaridade que sofriam as aldeias do norte de Portugal durante o regime de Salazar. A minha ligação com Portugal é aquela de milhares de filhos de emigrantes. Passei a minha infância a regressar todos os anos para as férias em Portugal, ainda hoje regresso várias vezes por ano. Aprendi a cultura portuguesa em casa, onde os meus pais falavam português. A cultura francesa era-me transmitida pela escola, a portuguesa pela célula familiar. Tenho a riqueza de duas identidades e hoje sinto-me tanto francesa como portuguesa. Os meus filmes (sempre em coprodução) testemunham essa dupla relação que eu tenho com os dois países. O meu cinema vai buscar influências dos dois lados, é talvez por isso que se torna singular.
– Os estudos que teve em cinema e as experiências em teatro foram fundamentais para a construção dos seus filmes ou considera-se mais autodidata e dependente das memórias? Isto é: mais cinefilia ou mais vida?
Esta primeira longa é o resultado de muitos anos de trabalho, de observação, de pesquisas. É óbvio que os meus dez anos de teatro, o meu fascínio pela tragédia (Antígona, Medeia…) pelo Jean Genet e pela questão identitária que já me obcecava nas peças de teatro que escolhi encenar, sentem-se nesta minha primeira obra de cinema. O burlesco, o romanesco e a teatralidade do cortejo final são sinais desta influência. Sinto-me autodidata no sentido em que não fiz escola de cinema e que aprendi e descobri a gramática e as possibilidades que oferece o cinema no terreno, realizando curtas metragens e vendo filmes. Confesso mesmo que a minha cinefilia começou bastante tarde e, por isso, tenho a sorte de ainda ter muitos filmes para descobrir!
– Acredita nas tradições, crenças, feitiços ou superstições da terra e da prole que filma ou simplesmente aceita as coisas como elas são (ou foram)?
Acredito nas tradições como uma possibilidade de lidar com rituais de passagem do ciclo da vida e da morte, rituais de libertação, de cura, que nos permitem criar relação entre os seres humanos na sociedade e enquadrar o imprevisível das nossas vidas. Alma Viva inventa (a partir duma observação quase antropológica) um ritual de antepassados com referências ao paganismo. A defunta Avó não pode descansar em paz e separar-se dos vivos, porque ela não teve o ritual adequado – a saber, ter uma campa e ser enterrada. O corpo dela permanece em casa à espera do filho (Leonel), que nunca mais chega, e esta presença do cadáver na aldeia é o pretexto para criar uma lenda urbana de maldição. Alguns aldeões acreditam que foi ela que provocou o incêndio para se vingar da morte por feitiçaria e pelas brigas familiares. Em muitas tradições pelo mundo, e até nas tragédias antigas, os mortos devem ter rituais funerários justos para deixar os vivos em paz. Em Alma Viva, a morte da Avó provoca brigas na família e o caos na comunidade mas, quando no final acontecem os rituais certos, esses mesmo ritos acabam por unir os membros da família e acalmar o incêndio (com a chuva milagrosa), o que permite aos aldeões regressar às suas casas. A questão de acreditar ou não em bruxaria não é o assunto central do filme. Até porque o filme propõe uma leitura racional dos eventos. O médico fala de morte por AVC, o incêndio pode ser causado pelo calor… Era importante deixar o campo aberto ao espetador, porque quando é uma questão de crenças e de mistérios, há sempre duas leituras possíveis, a racional e a irracional. O único mistério que se mantém é para “onde vamos quando morremos?”, pergunta feita pela Salomé à mãe. Eu acredito que não podemos racionalizar tudo e o facto de acreditar que a morte se abre sobre o nada, é uma visão minoritária do mundo que se impõe às nossas sociedades ocidentais com muita convicção. Permito-me questionar isto do ponto de vista de uma criança que pode entrar em relação com os mortos (pelo dom que lhe é transmitido pela Avó) e que acredita na força poderosa da magia e nos perigos que isso lhe traz.
– Alma Viva parece-me, à maneira do Fritz Lang de Moonfleet ou dos primeiros filmes de Víctor Erice, mas já outra coisa, visto e conduzido pelos olhos de uma criança. Como pensou isso em termos de mise en scène e das questões de perceção que se alargam infinitamente pelo campo sonoro?
Toda a mise em scène e a planificação foram pensadas do ponto de vista da criança. Ela entra em cada cena e o desafio era não ter um passo de avanço sobre ela, de pôr a camara ao seu nível, de ver o mundo com os olhos de uma menina de 9 anos. Victor Erice e Carlos Saura foram mestres que me inspiraram, mas também a realizadora britânica Andrea Arnold que faz uma bela desmonstração da câmara subjetiva no seu filme Red Road. Confesso que não foi fácil focar-me sempre neste ponto de visto da criança, porque a minha tentação era muitas vezes querer também filmar o grupo dos adultos. Mas, cada vez que saíamos do ponto de vista da Salomé, o filme perdia força. E foi no momento da montagem que essa realidade sobressaiu claramente. Por exemplo, tive de me separar de um grupo de jovens que criavam uma transgressão muito grande na narrativa principal e nos distanciavam da Salomé. Para incarnar este mundo da infância, escolhemos pôr a câmara mais próxima do chão, quase ao nível do amigo cão com quem ela gosta de brincar – por baixo da mesa, do caixão, deitada no colchão na rua, no soalho de madeira. Existe uma fisicalidade da criança, uma linguagem do corpo que tínhamos de respeitar. Foi bastante desafiante para o Rui Poças, sobretudo. A perceção dos sons foi um trabalho muito sensível e delicado, a ideia era tentar criar uma atmosfera sobrenatural com sinais minimalistas como o grito de uma coruja, o ritmo dos tambores, a perceção dos elementos como o ar nas folhas das árvores, o fogo que crepita… Na composição musical, com o Amine Bouhafa, fomos buscar instrumentos que têm a ver com o mundo oculto, que nos levavam ao sagrado, como é o caso da harmónica de vidro, um instrumento muito raro que o Mesmer usava no século XVII nas suas sessões de magnetismo e hipnose coletivas. É com este instrumento que fechamos o filme, com a elevação da alma viva da Avó que sobrevoa as alturas da aldeia.
– Tratando-se do olhar e da psicologia de uma criança, como fugir a uma espécie de “lei das imagens e dos sons”, a esse ruído audiovisual que hoje em dia escorre pelos mais variados ecrãs e formatos, condicionando a criação livre. É possível ver as coisas como que pela primeira vez?
A virgindade do olhar não me parece ser possível. Nascemos com memórias celulares e representações do mundo que nos vêm de muito longe. Não acredito neste olhar puro de poder ver pela primeira vez. Somos feitos de imagens arcaicas que nos foram transmitidas pela genética e pela nossa história cultural e coletiva. Mas sim, concordo com a dificuldade que vão ter as novas gerações para escolher a imagem certa, na confusão de imagens que a sociedade mediática lhes traz. Não sou socióloga e só posso partilhar uma experiência à minha escala. Na semana passada, Alma Viva recebeu o prémio do júri jovem no Festival Cinemed de Montpellier, em França. Eu sinto, nas salas por onde passo, que os jovens são muito sensíveis ao filme, apesar de, aparentemente, este não ter nada de atraente para eles (questão de mortos, de partilhas, de tradições). Fiquei muito surpreendida por testemunhar essa atração e a emoção que sentem com o filme. Isso quer dizer que os jovens são capazes de diferenciar o bom do mau conteúdo. Quando vão ver filmes ou séries nas plataformas, vão querer divertir-se de forma pouco construtiva. Quando vão ver um filme ao cinema, de preferência de produção nacional (não aquelas produções americanas!), vão alimentar e enriquecer a fibra artística e poética de que vão precisar para entrar na vida adulta. O cinema neste caso torna-se um ritual de passagem. Precisamos da catarse que nos cria as histórias para crescermos e aceitarmos a nossa condição, para fugir da visão do mundo que nos dá a nossa realidade (um pouco) desencantada.