Em 2022 três grandes autores fizeram obras tão grandes como
tudo o que já fizeram. Herzog foi desenterrar imagens alheias. Mário Fernandes
fez um luto vital. McCarthy fez também ele um requiem pelo irracional.
Irracional, analógico, amador. O inesperado e o risco. A bomba atómica de Oppenheimer
é o irracional que salva e a lucidez que cega de qualquer destas obras. O ideal
seria não falar em filmes, livros, discos… Mas falar em gestos e coragem. Antes
da cultura, a liberdade total da expressão. O conhecimento. A
irresponsabilidade.
FILMES:
- The
Fire Within: A Requiem for Katia and Maurice Krafft, de Werner Herzog
As mais sublimes e abissais imagens da História do Cinema
foram arrancadas, colhidas ou domadas por amadores. Sem consciência de estilo.
Sem lucro calculado. Por necessidade. Para a memória. Herzog é um atlante,
Suporta um mundo enorme! (António Reis dixit)
- Mnemosyne, de Mário Fernandes
Todas as perdas de todos os tempos. O que escorre pelas
crostas destas imagens e destes sons novos? O mundo desde que é mundo
(natureza, Homem, segredos) a sangrar.
- Ilha dos Pássaros, de Maya Kosa e Sérgio da Costa
Uma pequena imagem / forma científica, o cosmos a perder de
vista e a sua poética.
- La Maman et
la Putain, de Jean Eustache, 1973 (reposição)
Palavra em carne viva. Corpo de Deus. Sacrifício
irreversível.
- Accattone, de Pier Paolo Pasolini, 1961 (reposição)
Johann Sebastian Bach das auras celestes e os anjos do
degredo de todas as sarjetas da terra. Não sob o mesmo olhar, antes em rotação
numa mesma esfera, matéria de gravidade que perece e reanima, que perece e
reanima… sem culpas. Matéria na gravidade.
+1:
- Top
Gun: Maverick, de Joseph Kosinski
Se este manifesto suicidário tivesse terminado com o suicídio
de Rooster em direção ao infinito e impossível Éter, a aproximação a Virgílio e
à nova Eneida roçaria o impensável. Tudo o que se segue é traição publicitária.
Mas a pulsão esteve lá. A pulsão de
morte de não-heróis queimados e estraçalhados pelas sombras ontológicas.
(RE) DESCOBERTAS:
- Southern Comfort, de Walter Hill, 1981
A guerra do ano (da época, a última novidade abjeta que
chegou) e a guerra da antiguidade são um prolongamento. Irreversível enquanto
aqui estivermos.
- Enchantment, de Irving Reis, 1948
Tudo tem espírito, tudo tem carne. Basta a centelha
alastrar.
- Appunti per un'Orestiade africana, de Pier Paolo
Pasolini, 1970
Rima perfeita, redondo vocábulo, com The Fire Within
de Herzog: a metade do mundo esquecida como a beleza e a utopia inaudita (e
logo esquecida pela metade reinante). Tanto na antiga cópia VHS carcomida como
no restauro HD, nunca a carne e o olhar alcançaram tais brilhos.
LIVROS:
- The Passenger / Stella Maris, de Cormac
McCarthy
No centro do Incesto e do Apocalipse absolutos, a ousadia da
Loucura, isto é, desfaçatez de olhar o (falso) medo que nos fazem suportar de
frente, tal como não se deve olhar o fogo ou a lua. O caminho ainda possível
para a liberdade. (tradução: Paulo Faria)
- A Fome Apátrida das Aves, de Francisco Duarte
Mangas, 2013
Conhecimento. Observação. Transmissão. Milagre: antes do
verso ou da frase ou da melodia, cada palavra ao calhas, cada canto de papel, são
o Éden; não o regresso a tal, mas o Éden intocável, Adão e Eva como fontes
jorrantes de todas as possibilidades, perfeições, contrários.
- Dictionnaire des films - Tome 2 De 1951 à nos jours,
de Jacques Lourcelles
Quando a aristocracia sublime significa simplicidade
sublime.
- Eneida, de Virgílio (tradução de Carlos Ascenso
André)
A forma épica e o suspiro íntimo conjugados à mesma medida. Resplandecentes
carnes e resplandecentes mentes em conluio com trevas originais.
DISCOS:
- Mr.
Morale & the Big Steppers, de Kendrick Lamar
KL, o único que ainda morre a cada inspiração e morre de
novo a cada expiração. Tamanha massa e energia não podem ser igualadas em
potência crescente, bombástica.
EVENTOS:
- Todas as apresentações feitas por Mike Siegel sobre Sam
Peckinpah nos Encontros Cinematográficos do Fundão. «Do pentelho revelador ao
geral e à síntese», como alguém disse, coube tudo. Tudo deste genuíno
intelectual / selvagem apareceu de novo e para lá de quaisquer bordas.
in: https://tribunadocinema.com/os-melhores-momentos-de-2022-segundo-jose-oliveira/
imagem: excerto de O Passageiro de Cormac McCarthy na tradução de Paulo Faria
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