Antes de mais, em nota
pessoal, apresentei filmes meus em edições anteriores, o que me permite admirar
o trabalho dos muitos mais envolvidos ao longo dos anos. Esse trabalho
admirável e hercúleo, sonhador, as mais das vezes gratuito, levado a cabo longe
dos grandes centros. Uma constante aprendizagem pessoal.
Tom Luddy deixou esta terra em
fevereiro do presente ano. Figura imensa do cinema, em várias latitudes, é mais
um desaparecimento que deixa um vazio insubstituível. Um vazio triste. Porque representa outras épocas, outros
tempos, outros sonhos, outra visão grandiosa e generosa que já não se coaduna
com o lado mercantil e carreirista que hoje tanto ambiciona quem faz filmes,
como quem os permite ver. Uma outra época de que ainda apanhamos fiapos,
enredando-nos neles, estupefactos. Luddy foi, tal como Werner Herzog considerou
Lotte Eisner, um dos últimos mamutes à face da terra. À semelhança de João
Bénard da Costa, Henri Langlois, Amos Vogel, Peter von Bagh, Eisner, não deixa
herdeiros directos, sendo, no entanto, possível aprender tudo com eles. São figuras
do cariz de Chaplin ou Eisenstein, sendo que alguns deles confluíram, afetando
mutuamente o trabalho e a vida.
No entanto, Tom Luddy, à
semelhança de von Bagh, não se ficou por cuidar e mostrar criteriosamente o
cinema que importa. A sua vida foi uma imensa aventura. Acolheu Jean-Luc Godard
(e Gorin) nos Estados Unidos e rasgou meticulosamente uma via para fazer entrar
em eixos funambulescos um filme impossível, King Lear, metendo ao
barulho Norman Mailer e a sua caneta, Woody Allen e o seu tagarelar ou,
decisiva e miticamente, o lendário produtor Menahem Golan, que por esses anos
tanto ajudava ao prestígio de Barbet Schroeder, como permitia filmes de acção
de Stallone, Van Damme, a saga Ninja Americano ou a saga outra de quase sete
horas de O Sapato de Cetim de Oliveira. Diz-se que pagou do seu próprio
bolso uma parte do Mishima de Paul Schrader, noutra produção louca,
encurtando continentes, egos e temperamentos. Além da sua relação duradoura com
Francis Ford Coppola na American Zoetrope, que fez acontecer outras
impossibilidades e aparentes anomalias, sonhos grandes demais não-concretizados
mas tornados “outra coisa”. No Pacific Film Archive pelos furiosos anos
setenta, no San Francisco International Film Festival ou de modo mais decisivo
e revolucionário no Telluride Film Festival, foi tanto um exibidor de filmes,
que de outro modo não passariam a fronteira americana e logo outras fronteiras,
como permitiu meter em diálogo hemisférios, ideias, culturas, religiões e
visões do mundo díspares. Godard com Mailer. Kurosawa com os movie brats
Hollywoodianos ou com Les Blank ou Wim Wenders. Adam Driver a ver um filme ao
lado de Herzog. Imenso e impossível resumo… Os sonhos de Werner Herzog e os
sonhos de Telluride, em certos momentos, confundiram-se.
Está claro de ver, para Luddy o
importante não eram os prémios. O máximo que parecia exigir (uma tradição
informal, como se dizia por lá) era que os filmes a exibir em Telluride
tivessem aí a sua estreia norte americana, mas mesmo isso nunca pareceu
negociata mas antes acautelamento contra os tubarões. Nas montanhas do
Colorado, este arquivista, programador, produtor, activista significativo pelo
cinema e pelas causas sociais e políticas da sua época, manteve durante décadas
uma utopia em movimento, e foram os grandes estúdios que num certo ponto
fizeram gosto em lá estrear os seus filmes. Serve esta introdução perfeitamente
redutora para falar dos Encontros Cinematográficos do Fundão que se aproximam. Ao longo de uma década no vale do Fundão,
rodeado pelas montanhas da Serra da Estrela e da Serra da Gardunha, dialogaram
entre si, muito para lá dos limites da sala de cinema, mulheres e homens do
mundo inteiro: Manuela Serra, Andrea Tonacci, Pedro Costa, Pierre Léon, Víctor
Erice, Hiroatsu Suzuki, Miguel Marías, Mike Siegel, Billy Woodberry, Mercedes
Álvarez, Pierre-Marie Goulet, Virgínia Dias, Adolfo Luxúria Canibal, entre
muitos outros.
Sei que destas estadias,
experiências e conversas (encontros), resultaram dois ou três milagres
quantificáveis: Manuela Serra voltou a conciliar-se com o seu filme O
Movimento das Coisas, a amá-lo e a querer mostrá-lo o melhor possível; Pierre-Marie
Goulet permitiu rebatizar este acontecimento, que nos alvores se realizava na
Guarda e antes ainda em Trancoso sob a égide de Olhares sobre o mundo rural, para Encontros
Cinematográficos, sendo o termo e a dádiva “Encontros” acolhidos da sua
obra-prima absoluta Encontros, filme cósmico e secreto de 2006; Manuel
Mozos prepara-se para rodar um documentário sobre o mítico Jornal do Fundão
depois de muitos anos de ajuda na programação, depois de muitos filmes seus
terem passado pelo Fundão; enfim, as Canções para Cimino, que Marta
Ramos, João Palhares e João Parreira musicaram e cantaram a partir de letras
escritas por Cimino no seu romance Big Jane. Nos Encontros
Cinematográficos não existe competição, nem prémios, muito menos posturas
ditatoriais, mas sim criação de afinidades, ou disparidades, de ligações para a
vida ou recusas proveitosas. Pode-se amar um filme, um modo de fazer cinema,
uma cultura, uma maneira de explanar as ideias, como se pode criticar, propor,
destruir, sem a pressão e a necessidade de charme que poderá conduzir a um
prémio ou a recortes de imprensa bombásticos e proveitosos para o próximo concurso
de financiamento. Não existe promoção de nada, apenas emoções.
Por isso, uma pessoa que programa
num ano poderá no outro mostrar uma obra sua (ou vice-versa) – um filme ou um
livro ou uma pintura, pois o mundo do cinema é assim vasto – não existindo a
cobardia ou a hipocrisia que desemboca no arrivismo, e que é a marca oficial de
mais de noventa por cento dos festivais e mostras de cinema competitivos. Nos
Encontros não se vai à caça da última novidade bombástica que conquistou o
máximo prémio do festival de categoria A ou Z, mas existe uma pulsão de vida ou
de morte para se dar a ver um filme que imerecidamente ninguém falou mas que
salvou o ano de alguém. E tanto pode aterrar um filme injustiçado de Sylvester
Stallone – e este ano será esse mesmo o caso, pois o ovni será O Beco do
Paraíso – como uma primeira obra de alguém que não poderia deixar de se
expressar pelo cinema, mesmo sem estudos, mesmo sem meios ou influências, sem
cheta, coisa que também poderá acontecer.
Claro que existe critério, claro que existe o gosto e as ideias e as
relações de cada programador, bem como possíveis contradições e birras, mas
existe, em primeiro lugar, um amor incondicional por cada escolha, a defender
com unhas e dentes e não como um produto indistinto. Finalmente, o cuidado com
os textos de apresentação dos críticos, historiadores, realizadores, músicos ou
demais, os cuidados com as entrevistas, com o objecto catálogo e com o seu
conteúdo, levados ao extremo, num trabalho apurado de meses, que permitirá no
futuro estabelecer um arquivo de memória.
Este ano, nuns Encontros que
inauditamente se realizarão em agosto, de 11 a 14, teremos um bloco que celebra
o centenário do cinema de animação em Portugal, contando com a presença de
consagrados realizadores, como Abi Feijó, Regina Pessoa, Nelson Fernandes,
Bruno Caetano ou João Gonzalez (este ainda a confirmar). Todos estes artífices
estarão presentes, certamente com consequências. Ou seja, o filme de um grande artista
da região, Nelson Fernandes, e o primeiro filme português a ser nomeado para os
Óscares, na mesma sessão. Nelson Fernandes apresentará em estreia nacional a
sua última criação, Motus, e João Dias, realizador do importante As
Operações Saal e montador dos últimos filmes de Pedro Costa, segundo a
nota de imprensa, terá «a aguardada estreia de Senhora da Serra (Cópia
de Montagem), um filme que assume a paisagem da Serra da Gardunha como palco
privilegiado do grande teatro da vida, partindo de uma releitura das narrativas
do culto mariano no interior de Portugal e de lendas da Gardunha.» E ainda Terra
que Marca, um labor único, raro, em comunhão com a terra e com as nossas
ambições mais ancestrais, boas e más, que tem sido acolhido pelo mundo fora
como a obra-prima que é, mas que em Portugal está a ser deixado para uns happy
fews. Um jornalista do nosso maior jornal disse que sentia vergonha em
avaliar um objecto tão pessoal e íntimo… Será não um acto de justiça, mas a
revelação natural, incandescente, das suas características e ousadias sem par.
Raul Domingues, um paciente trabalhador de imagens, sons e ritmos, conversará
com quem quiser. Também importante, será apresentado o livro Perseverança
(ed. The Stone and The Plot), de Serge Daney. Mote para a projeção de dois petardos
absolutamente distintos que o célebre “cine-filho” muito admirava: Hiroshima,
meu amor de Alain Resnais, sobre o qual escreveu, e o referido Beco do
Paraíso, amor que ele só confessou a amigos.
Não de menosprezar são os
convidados que acompanham os realizadores e também os filmes escolhidos por
estes. Isaura Reis, David Caetano e Sérgio Dias Branco conversarão com João Dias,
e Manuel Guerra apresentará e falará com Raul Domingues. João Dias escolheu o
indescritível e sobrenatural filme de horror que é Benilde ou a Virgem Mãe,
de Oliveira, e Raul Domingues o raríssimo e épico Uma Aldeia Japonesa,
Furuyashikimura de Ogawa Shinsuke, com as suas três horas e meia de duração
e paciência. Por último, e por isso primeiramente, uma Caminhada Poética com
leitura de poemas e piquenique, organizada pelos Caminheiros da Gardunha e por
Marta Ramos, a partir de uma ideia da última e inspirada pelo filme Terra
que Marca. Estes serão alguns dos vetores num quadro mais amplo de eventos,
que incluirá ainda música e, claro, muita informalidade. E talvez assim se
possam colher novos testemunhos como os que aqui deixo sobre edições
anteriores, por pessoas aparentemente díspares ou absolutamente parecidas.
Mike Siegel, realizador e
historiador do cinema, Estugarda (Alemanha): «Estes dias no Fundão serão
guardados como os mais felizes da minha vida. Muito obrigado pelo convite».
Miguel Marías, escritor e
historiador do cinema, Madrid (Espanha): «Sou fã destes Encontros há vários
anos, pela programação sempre cuidada e atenta, pela naturalidade, paixão e
amabilidade de todas as pessoas».
João Alves Fernandes,
operador fabril, Setúbal: «Há vários anos que me desloco ao Fundão para
assistir a estes Encontros, porque aprecio a arte cinematográfica de qualquer
género e aqui os filmes e os autores são bem tratados».
Jorge Almeida, cinéfilo,
São Paulo (Brasil): «Além dos filmes geniais – muitos deles menos conhecidos –
e dos convidados de excelência, destaco a simpatia das pessoas e três momentos
inesquecíveis: uma rapariga descalça a descer a Avenida de Liberdade para
assistir à projecção do filme “Paz”; o concerto de homenagem a Sam Peckinpah e
o convívio no Moto Clube Os Trinca Cereja; todas as pessoas a cantar na
inauguração da fantástica exposição colectiva “Templo de Amor em tempos de
Guerra”. Estes Encontros são um Templo de Amor, uma casa aberta a todos.
Parabéns!».
Lise Bardou, artista
visual, Toulouse (França): «Sente-se a verdade, aqui o tempo não existe. Saúdo
ver esta iniciativa engrandecida. Bravo e obrigado!»
Marta Mateus, realizadora,
Lisboa: «Se o cinema estiver, esteve ou está numa encruzilhada, há os que se
perdem. Aqui encontram-se os Homens e as Mulheres com o cinema. Obrigada.»
Luís Miguel Cintra, actor,
Lisboa: «Caloroso ambiente mais humano que cinéfilo graças a Deus e sem preconceitos
comerciais ou de mercado. Dias Felizes.»
Ana Luísa Guimarães,
realizadora e professora, Lisboa: «Gostei muito do ambiente caloroso, próximo,
com verdadeiros encontros entre as pessoas e entre estas e os filmes.»
Ivana Miloš, escritora e
artista plástica, Croácia: «Nos Encontros uma pessoa sente-se mais perto da
paisagem, das montanhas e gentes que nos rodeiam, e também do cinema.»
Loukia Batsi, poeta,
Atenas (Grécia): «Foi no
Fundão que descobri o que significa a palavra Encontro. Sinto que além dos
filmes há uma comunhão de valores.»
in: https://tribunadocinema.com/encontros-cinematograficos-do-fundao-2023/
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