segunda-feira, 21 de agosto de 2023

O Beco do Paraíso / Paradise Alley, 1978

 

Os Encontros Cinematográficos do Fundão vão para a 13.ª edição. Com um bloco que celebra o centenário do cinema de animação em Portugal, e a estreia dos novos filmes de Nelson Fernandes e João Dias, um dos pontos altos é o lançamento do livro “Perseverança” (ed. The Stone and The Plot), de Serge Daney. Pretexto para uma homenagem há muito ambicionada ao incomparável e sempre incompreendido Sylvester Stallone, com a projeção ao ar livre de O Beco do paraíso. Acontecerão de 11 a 14 de agosto.


Perto demais do Paraíso e perto demais do Inferno

José Oliveira





Sylvester Stallone, autor? Mais uma vez, quando em 2019 o Festival de cinema de Cannes decidiu fazer um prestigioso RENDEZ VOUS AVEC/WITH... SYLVESTER STALLONE, muita gente, e muita boa gente, desconfiou. Mas logo de partida quem se portou muito bem foi o entrevistador, Didier Allouch, que até permitiu trazer à liça o Stallone pintor. A primeira das perguntas foi a mais certa, e abriu caminho para uma conversa justa, tomada pelo tom sincero e humanista que sempre foi o melhor que Sly, as suas personagens mais fortes e todo o cinema americano tiveram – um homem tem a altura e a dignidade da sua vida. Didier Allouch falou de resiliência, Sly confirmou que a resiliência está marcada na natureza do homem, falou das antigas civilizações destruídas e recompostas, e de como não se deve aceitar a derrota facilmente, como se deve ripostar sempre, regressar sempre, e que estes são os temas eternos, ligados à mitologia que mais para a frente na conversa ele iria dizer-se apreciador.

 

Alguém, ele e as suas personagens, que não se separam dos seres comuns, anónimos, e parecia estar a dirigir-se à plateia ao afirmar tal. E logo a seguir falou no grande tema de todos os seus filmes, que é o grande tema que importa saber lidar para se seguir em frente, na vida como nos filmes ou em qualquer arte: o falhanço. E foi desenvolvendo: «O falhanço apenas nos faz mais espertos. Muitas vezes o sucesso deixa-nos tontos. Pois pensamos que já não podemos aprender mais nada. O falhanço faz-nos mais espertos. Pois aprendemos e sabemos como navegar a seguir». Foi uma conversa que se tornou um filme igual ao primeiro Rocky ou ao primeiro Rambo, de uma sinceridade lancinante e magoada. Mais magoado consigo mesmo por em certas alturas da vida não ter sabido fazer as escolhas certas, sem culpar o resto do mundo. E ficamos a saber que na altura ninguém quis produzir Rocky, que depois de Sly o ter feito de forma bastante guerrilheira ninguém o quis distribuir, e que antes disso os produtores tentaram dezenas de outros actores – ou mesmo um Canguru… – a ter o próprio Sly como actor principal… e o mesmo se aplicou à saga Rambo e a outros projectos posteriores e pessoais.

 

Numa conversa entre Eduardo Lourenço e Alberto Manguel no Festival Literário da Madeira em 2015, versada sobre a actualidade do mito de Sísifo, o último elabora cuidadosa e lucidamente sobre o falhanço: «O artista, o escritor, Sísifo, chega a encontrar nessa debilidade [Manguel estava a discorrer sobre o escritor utilizar uma ferramenta débil como a linguagem para criar] da linguagem, nessa impossibilidade de criar a obra perfeita, a justificação do acto artístico. Porquê? Porque uma parte essencial de toda a criação artística é o fracasso. Uma obra perfeita não tem validez artística. As obras de Paulo Coelho são perfeitas. E o leitor não tem campo de acção nessa obra. É unidimensional, e quando fechamos o livro, se estamos condenados a ler Paulo Coelho, fechamo-lo para sempre. Pelo contrário, quando lemos Dante, Eça de Queirós, Cervantes, a obra continua a abrir-se, e continua a abrir-se pois ao fim e ao cabo não é perfeita. Há brechas, há momentos em que a obra volta a cair como a rocha de Sísifo. Chega a subir até a um certo ponto mas depois a rocha cai, e nesse momento o leitor pode ajudar Sísifo a subi-la uma vez mais, até que uma nova geração de leitores também a ajude a subir. Há ao mesmo tempo desespero e regozijo. Um dos meus autores preferidos, Robert Louis Stevenson, disse que a nossa missão na vida não é triunfar, mas continuar a fracassar, no melhor dos espíritos.» Mais tarde ainda explicou, ou tentou como pôde, tal como quem tenta explicar a singularidade de Sly, o porquê de considerar Júlio Verne um grande escritor. E disse, mais uma vez, algo fundamental: que há vários tipos de grandes escritores. Há o grande escritor Cervantes como há o grande escritor Júlio Verne.

 

Será tentador e fascinante aproximar Sylvester Stallone, e sobretudo Rocky Balboa, não apenas como a personificação do sonho americano, mas como um Sísifo, um pobre Sísifo humilde que jamais baixa os braços e jamais deixa de escutar o seu coração. Mas, tal como as personagens do grande cineasta sonhador Frank Capra, Sly e Rocky, os dois unos, são demasiado humildes para tais assunções, e isso está no âmago e na matéria visceral e terna de que são feitos. Mas como são sem dúvida Sísifo, não vale a pena elaborar de forma literal. Paradise Alley, vertido belissimamente para português como O Beco do Paraíso, realizado pelo próprio Sly dois anos depois de Rocky triunfar vindo da humilhação, é o filme que me traz por cá. História de irmãos, de sangue, de ligações directas e subterrâneas, dos anos 1940 de Nova Iorque e do submundo que lhe subjazia, é um filme de obscuridades indecifradas, de devaneios e de uma féerie artesanal e desengonçada, clownesca e perto de uma parada de freaks naifs, que mais uma vez tira todo o tapete a ideias pré-concebidas. Leos Carax, que nos fins dos anos setenta decidiu escrever duas ou três coisas para os Cahiers du Cinema, deixou-se enfeitiçar por tais ousadias e desabafou: «Paradise Alley é o pesadelo de um órfão (vejam novamente o extraordinário The Night of the Hunter, de Laughton, se quiserem entender o que é um filme-órfão: a identificação do espectador não pode ser mais profunda do que com a personagem do órfão, a criança sozinha no escuro). (...) A única forma de continuarem irmãos, é apostar na vitória juntos. Não para travarem uma guerra, mas, por exemplo, para terem um combate de luta-livre. E estamos na cena da luta final, onde Victor e Frankie the Thumper lutam intensamente, cada um pela sua família. Cada um dos dois corpos leva muitos golpes, alguns deles directamente no rosto. O problema de toda esse espectáculo, assim como no cinema, é que há manipulação, e nós sabemos disso. Stallone sente prazer um prazer que é, primeiro, infantil de filmar esse truque pelo que ele é. O seu filme é um grande filme; é cinema. E se as pessoas não foram ver, perderam uma boa oportunidade de amar o cinema.»

 

Um grande filme, teve a ousadia de dizer Carax no seio parisiense dos Cahiers, e, sabemo-lo agora, estava bem acompanhado, pois também o editor da altura, Serge Daney, amou bem o filme, como contou Paulo Branco quando há uns anos o exibiu no seu festival. Que Carax tenha ainda introduzido a condição original e primeira do cinema, a orfandade atrás e à frente do ecrã, e se tenha detido sobre a questão do falso na luta e no cinema, teletransporta ainda todo esse universo para lá da quarta parede da protecção da ficção, iludindo-a com toques de prestigiador. Um filme de irmãos diferentíssimos que no fim do conto ficam como iguais, passadas as tempestades e as transgressões que qualquer família, à imagem de uma micro-sociedade, pode ter. Os irmãos Carboni são três: temos o irmão intelectual, Lenny, que exerce a sua medicina peculiar numa morgue, aleijado de uma perna por causa da guerra e perfeitamente Chaplinesco (Armand Assante, contidíssimo, deprimidíssimo até quando rouba a mulher a um irmão); temos o irmão dos músculos, Victor, o mais novo, entre a indústria do gelo e a indústria dos punhos, joguete nas mãos dos outros dois e do mundo, demasiado inocente em terra de espertos (Lee Canalito, quase actor mudo, quase saído da família de secundários do verdadeiro Chaplin); e Cosmo, que sem parecer é o mais velho, esse ainda mais Chaplinesco pois sem necessidade de ser macaco de imitação, chico-esperto por natureza ou por sobrevivência, constantemente entre o desenrascanço e a esquina derradeira, como no magnífico prólogo da dança de morte pelos telhados de NI (Sly, a contrariar todas as dádivas de Rocky em derrisão prodigiosa, personagem pícara à época impensável).

 

Num arco narrativo tão clássico como tocado pelas ilusões e pelas aleatórias transferências surrealistas (o macaco conquistado num concurso tem uma importância narrativa obviamente metafórica), vão-se sucedendo pactos inquebráveis e omissões carnais, ganâncias ancestrais, manipulações indesculpáveis e sublimes redenções para lá do aceitável, como só aos verdadeiros irmãos são permitidas. À corrupção do corpo e do espírito nos momentos-limite, toda a memória, como toda a infância, vai despontando na consciência até à límpida imagem final. Pelo sangue se perde, pelo sangue se ama. E O Beco do Paraíso não deixa de ser, ou é-o de corpo inteiro, um filme sobre o falhanço. Não um falhanço pelo falhanço, não esse romantizar do falhanço que tanto mal fez a muita gente e a muitas obras. Não um beco sem saída. Mas esse falhanço regenerador que comporta sempre em si a possibilidade de nascença de uma outra coisa. Um devir fértil. Um Sísifo consolado. Beco que é um cosmos em si com a possibilidade de um paraíso algures. Socorrendo-me ainda de Manguel ou de Stevenson, temos falhanços nas personagens, na sua sociedade e no mundo que escolheram, como o filme em si é em parte falhado, isto é, permeado por todos os lados com riquezas e emoções sem freios, carregado de leituras intermináveis e de artérias cruzadas. Um amigo meu chegou a dizer-me que O Beco do Paraíso é uma ópera (ou opereta?) e que nas suas personagens podemos achar tenores, barítonos, baixos, etc. E mesmo sopranos e contraltos perfeitos, arriscaria eu, pois a mulher é igualmente essencial na narrativa, na perdição, nos eternos-retornos e nos paraísos em causa.

 

Que hoje em dia O Beco do Paraíso esteja a ser redescoberto por uma nova onda de admiradores, de cinéfilos e de olhares e corações sem condicionantes estúpidas, é sinal de uma intemporalidade reconfortante – incontáveis outros jamais consideraram Sly por causa do seu acidente de nascença que nunca lhe permitiu a chamada dicção perfeita ou registos dramáticos carregados, muitos mais nunca lhe perdoaram o seu passado na pornografia e a figura do Italian Stallion que tudo confundiu entre o conto de fadas de Rocky e o abjecto, outros tantos não querem crer na possibilidade de alguém que escrevera um filme que ganhou o óscar principal ter sido arrumador de carros apenas um ano antes, e esses chamaram-lhe mentiroso e produto fabricado. Por muitos lados penou Sly e muita coisa diversa viu e experimentou, e todos esses calos, feridas e marcas psicológicas estão impressos tanto em si como, fatalmente, nas suas imagens e sons, na montagem, no ritmo do seu andar e no ritmo fílmico. Talvez por isso advenha amiúde, e indispensavelmente, um humor acanhado mas convicto de si mesmo, um aligeirar e um rir dos tantos obstáculos no caminho. Sly costuma dizer piadas ao invés de chorar frontalmente, talvez chorando para dentro, de fininho. Como nos seus filmes que importam – resumindo: Rocky, Paradise Alley, Rocky II, First Blood, Over the Top, Lock Up, Copland, Rocky Balboa, John Rambo, Creed, Creed II, Rambo: Last Blood, descontando esquecimentos – estamos perante um acto de justiça em desenvolvimento, em explanação, secreto, só possível mediante tamanha resiliência, honestidade, humanismo, teimosia, persistência.

 

Realizado, escrito, interpretado, cantado (Sly como Robert Mitchum em Thunder Road) e levado para a frente em todos os sentidos por este extraordinário homem que continua de pé e cheio de dignidade nos seus 77 anos, O Beco do Paraíso é tanto um prodigioso comentário de época de forma indirecta – na era do Vietname e das guerras frias o mundo é um manicómio – como uma realização por vezes absolutamente popular, por vezes perto do avant-garde – o achado de unir Sly ao mestre da cinematografia László Kovács foi responsável por essas cenas de irmãos junto ao cais, num pasmoso blocking que privilegia o artifício da representação e da movimentação para a câmara ao jeito de Ingmar Bergman e longe de Hawks, no momento grave em que percebemos as decisões do tudo ou nada. Riquíssimo todo, um cosmos falho e de interpretações ilimitadas. Quantas mais visões do filme, mais leituras, muitas das vezes contraditórias, claro. E talvez todo este barroquismo e espalhafato sejam apenas manobras de despista da solidão e da orfandade. No entanto, tudo se pode resumir à frase de despedida de outra personagem comovente, o Big Glory – que nome… – de Frank McRae, e assim fechamos, na língua original: «Remember, nobody in this world's gotta do nothing if they don't have a mind to.»

 

 [Junho de 2023]


Publicado originalmente no catálogo dos Encontros Cinematográficos do Fundão 2023

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