terça-feira, 16 de janeiro de 2024

FERRARI, de Michael Mann

 


O fulcral em Ferrari é o embate entre a potência da velocidade dos bólides e a potência de fixação das câmaras de filmar e da sua tecnologia acoplada, isto é, do cinema. O corpo a corpo entre duas modernidades frias, inconciliáveis, autónomas. E que são perfeitas máquinas de produção e de fixação da morte, da sua transcendência, da sua reverberação, do seu escrutínio.

Michael Mann, sendo o maior cientista-cineasta americano, utiliza, num primeiro momento, os seus utensílios primordiais, a câmara, o som e o desenho dos movimentos diversos no espaço em conjunção com o tempo, para sondar as correspondências secretas e inquietantes entre Enzo Ferrari e as suas máquinas automobilísticas. Parece, pois, natural que Mann tenha dedicado anos a estudar e a desconstruir, a pilotar e a tratar por “tu” os Ferraris.

Assim, muitas vezes, a frontalidade do registo e a gramática cinematográfica são abandonados em favor de uma lateralidade que já é uma narrativa outra, para além da mera biografia, da mera hagiografia: vemos, entre outros fragmentos passiveis de dissecar, a zona do pescoço e dos ombros do protagonista, para assim Mann analisar e pôr em evidência conceitos como a tensão, a pressão, a retração, a respiração, a entropia, a concentração (do sistema nervoso, do fluxo sanguíneo, etc.), as veias, os músculos, numa zona essencial e reveladora das ações exteriores no corpo humano. Por vezes o recurso ao slow motion enfatiza duplamente a demanda. E, ato contínuo, percebermos a correlação entre a fachada humanamente construída com a indiferença das máquinas em questão. Estamos constantemente a comparar Enzo na vida pública, robótico, maquínico, metálico, com Enzo na vida privada, um vulcão com a sua esposa, um anjo caído com a sua amante. Estamos constantemente a comparar a morfologia de Enzo com a morfologia das máquinas.

E, num segundo momento, metafísico, mas igualmente direto, como num grande acidente entre carne e metal, a montagem é essencial: não só para percebermos todas as motivações dramáticas e históricas – a magnifica sequência-fusão vulcânica da ópera – mas num mesmo nível para entendermos que uma escolha como a feita por Enzo comporta todos os tipos de resquícios funestos: o fantasma da mulher, Laura, as peças queimadas e os interstícios das carrocerias, as peças e os órgãos mortos pelas máquinas, amigos, filho, desconhecidos… numa espiral irremediável e interminável… o provisório da vida com a amante, Lina, o atrito na perceção da máscara utilizada em público e na recuperação do semblante original.

Ainda, o confronto imagético, sónico e visceral: a câmara de filmar que muitas das vezes deixa de acompanhar, lado a lado, o objeto dramático central das corridas, os carros com os pilotos, para ir contra eles, em contradição de encenação, de mise-en-scène, de inteligências. Aí já é o cinema, o cinema de Mann, a humanizar-se e a querer competir com o ronco dos motores supostamente inultrapassáveis, essa fabulosa criação humana, que, relembrou Mann aquando da primeira vez que vislumbrou um Ferrari, lhe pareceu uma besta, uma fera, um animal colossal fabricado pelo homem. Homem que se quis Criador, Deus, tentando ultrapassar as bestas das selvas que nos apareceram no mundo conhecido.

Mann a ousar que as particularidades estritas do cinema, esse meio incomensurável que Eisenstein não admitiu que servisse só para contar histórias, não alcançassem “apenas” as particularidades estritas da velocidade e das suas leis intrínsecas, mas que se tornasse (o cinema) besta, alma, selvageria. Uma selvageria precisa, orquestrada, disciplinada, por isso é que quando Enzo explica ao filho que «tudo o que funciona (flui) na perfeição é belo», lhe esteja a entregar a mais bela das dádivas, bem mais importante do que o autografo do ídolo sempre adiado. Essa frase é na mesma medida a síntese e o epitáfio do trabalho de Mann.

O natural ultra-romantismo final, um pai a apresentar um filho vivo a um filho morto, no cemitério humanizado de todos os dias, é a imagem acabada e perfeita deste quebrar de barreiras inquebráveis, deste violar de leis invioláveis que o homem, enquanto máquina ou besta sedenta, ousa sempre. Quando se ousa para além dos limites, não existem limites, seja na ciência perene, seja nos bons modos e costumes. E tanto a Terceira Lei de Newton como a fatalidade de um corpo esfriado onde o coração deixou de bater podem ser revertidos.

Ferrari é um monumento ao poder dos Homens, à sua racionalidade tantas vezes irracional, irrazoável, que os faz avançar. Um parceiro perfeito, e igualmente da família do sublime calado, discreto, em filigrana, complexo, do Bobby Deerfield de Sydney Pollack, a quem o filme também é dedicado.

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