O fulcral em Ferrari é o embate entre a potência da
velocidade dos bólides e a potência de fixação das câmaras de filmar e da sua
tecnologia acoplada, isto é, do cinema. O corpo a corpo entre duas modernidades
frias, inconciliáveis, autónomas. E que são perfeitas máquinas de produção e de
fixação da morte, da sua transcendência, da sua reverberação, do seu
escrutínio.
Michael Mann, sendo o maior cientista-cineasta americano, utiliza,
num primeiro momento, os seus utensílios primordiais, a câmara, o som e o
desenho dos movimentos diversos no espaço em conjunção com o tempo, para sondar
as correspondências secretas e inquietantes entre Enzo Ferrari e as suas
máquinas automobilísticas. Parece, pois, natural que Mann tenha dedicado anos a
estudar e a desconstruir, a pilotar e a tratar por “tu” os Ferraris.
Assim, muitas vezes, a frontalidade do registo e a gramática cinematográfica são abandonados em favor de uma lateralidade que já é uma narrativa outra, para além da mera biografia, da
mera hagiografia: vemos, entre outros fragmentos passiveis de dissecar, a zona
do pescoço e dos ombros do protagonista, para assim Mann analisar e pôr em
evidência conceitos como a tensão, a pressão, a retração, a respiração, a
entropia, a concentração (do sistema nervoso, do fluxo sanguíneo, etc.), as
veias, os músculos, numa zona essencial e reveladora das ações exteriores no
corpo humano. Por vezes o recurso ao slow motion enfatiza duplamente a
demanda. E, ato contínuo, percebermos a correlação entre a fachada humanamente
construída com a indiferença das máquinas em questão. Estamos constantemente a
comparar Enzo na vida pública, robótico, maquínico, metálico, com Enzo na vida
privada, um vulcão com a sua esposa, um anjo caído com a sua amante. Estamos
constantemente a comparar a morfologia de Enzo com a morfologia das máquinas.
E, num segundo momento, metafísico, mas igualmente direto,
como num grande acidente entre carne e metal, a montagem é essencial: não só
para percebermos todas as motivações dramáticas e históricas – a magnifica
sequência-fusão vulcânica da ópera – mas num mesmo nível para entendermos que
uma escolha como a feita por Enzo comporta todos os tipos de resquícios
funestos: o fantasma da mulher, Laura, as peças queimadas e os interstícios das
carrocerias, as peças e os órgãos mortos pelas máquinas, amigos, filho,
desconhecidos… numa espiral irremediável e interminável… o provisório da vida
com a amante, Lina, o atrito na perceção da máscara utilizada em público e na
recuperação do semblante original.
Ainda, o confronto imagético, sónico e visceral: a câmara de
filmar que muitas das vezes deixa de acompanhar, lado a lado, o objeto
dramático central das corridas, os carros com os pilotos, para ir contra eles,
em contradição de encenação, de mise-en-scène, de inteligências. Aí já é o
cinema, o cinema de Mann, a humanizar-se e a querer competir com o ronco dos
motores supostamente inultrapassáveis, essa fabulosa criação humana, que, relembrou
Mann aquando da primeira vez que vislumbrou um Ferrari, lhe pareceu uma besta,
uma fera, um animal colossal fabricado pelo homem. Homem que se quis Criador,
Deus, tentando ultrapassar as bestas das selvas que nos apareceram no mundo
conhecido.
Mann a ousar que as particularidades estritas do cinema,
esse meio incomensurável que Eisenstein não admitiu que servisse só para contar
histórias, não alcançassem “apenas” as particularidades estritas da velocidade
e das suas leis intrínsecas, mas que se tornasse (o cinema) besta, alma,
selvageria. Uma selvageria precisa, orquestrada, disciplinada, por isso é que
quando Enzo explica ao filho que «tudo o que funciona (flui) na perfeição é
belo», lhe esteja a entregar a mais bela das dádivas, bem mais importante do
que o autografo do ídolo sempre adiado. Essa frase é na mesma medida a síntese
e o epitáfio do trabalho de Mann.
O natural ultra-romantismo final, um pai a apresentar um
filho vivo a um filho morto, no cemitério humanizado de todos os dias, é a
imagem acabada e perfeita deste quebrar de barreiras inquebráveis, deste violar
de leis invioláveis que o homem, enquanto máquina ou besta sedenta, ousa sempre.
Quando se ousa para além dos limites, não existem limites, seja na ciência
perene, seja nos bons modos e costumes. E tanto a Terceira Lei de Newton como a
fatalidade de um corpo esfriado onde o coração deixou de bater podem ser
revertidos.
Ferrari é um monumento ao poder dos Homens, à sua
racionalidade tantas vezes irracional, irrazoável, que os faz avançar. Um
parceiro perfeito, e igualmente da família do sublime calado, discreto, em
filigrana, complexo, do Bobby Deerfield de Sydney Pollack, a quem o
filme também é dedicado.
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