Num dos poemas do livro POESIA, de Daniel Faria, lê-se: Quando eu era uma criança de muletas / Estudei o alicerce de coisas paradas / Observei as coisas que se moviam / No olhar estático das coisas que meditam. Era cirúrgico / Como o homem que opera nas pupilas as artérias do seu próprio / [coração.
Todas as obras que me tocaram em 2023 foram geradas numa
longa paciência, depois de postas de lado, esquecidas, duvidadas, ressurgidas,
esquecidas novamente. Todos os seus autores estudaram o assunto ao milímetro,
ao milésimo de segundo, durantes décadas ou numa noite de décadas. Por isso é
que o Ferrari de Michael Mann, que agora estreia, está justificado, é
majestoso, é único, para lá dos chavões críticos caducos: Adam Driver não é
Enzo Ferrari, é um Enzo Ferrari, não interessam os sotaques, interessa a comunicação
universal do coração, o embate das máquinas só ecoa os embates dos seres-humanos.
Tal como o motor e restantes peças de um desses bólides, tal como o corpo e a
alma (ou o espírito, ou a mente) de um humano, há o sublime e há o seu
contrário, há o universal, o corrupto, a cedência lamentável, combinados com o
único e com o indivisível.
Erice morreu mil vezes antes desta sua (para já!) última
obra total, morreu nela e com ela, e chegou a tempo de cegar e de abrir os
olhos a quem ainda acredita, seja em luz ou em amor. Raul Domingues voltou
durante anos a fio, por períodos definidos, à sua terapia pela terra, com a
terra e com os seus, e a terra e os seus acabaram por lhe devolver,
transcendido ainda, o seu labor em consonância com os ciclos, com o universo,
com a natureza. Khalik Allah ou Eduardo Coutinho, que parecem mais apressados,
só lá chegam, ao íntimo dos seus semelhantes, porque ainda conservam dentro de
si leites maternos e curiosidades infinitas, a alimentação primeira e a atenção
pela distância e pelo toque.
FILMES:
– Saint Omer, de Alice Diop
Tudo faz parte de tudo. Jamais o que é posto em movimento
poderá ser apagado. Em último e primeiro caso nem se trata de redenção, mas sim
de natureza. A natureza omnívora. Que nos escapa. Que não é aquilo que julgamos
que é. Diop concentra tudo, natureza humana e cósmica, nos tribunais terrestres
e nos enlevos espirituais, e cada um tirará a sua soma. Com Diop há perdão e
razões para todos.
- Terra que marca, de Raul Domingues
F. W. Murnau e D. W. Griffith. O cúmulo de concreto, o
cúmulo de fantástico. Meter em escala monumental homens ou folhas. Colher o
amado e revelar a ameaça. Com 35 mm ou Mini-Dv, a questão é sempre a mesma. O
fogo central que tudo anima ou pode animar. A plenitude ou a ambiguidade. Mas
em fogo. O objetivo é fazer ver, diria Griffith. O objetivo é fazer sentir,
diria Murnau. Em ambos, as chamas da lucidez e da paixão.
- Fechar os Olhos, de Víctor Erice
Jorge Luis Borges e Howard Hawks em acordo perfeito. O
máximo labiríntico e o máximo frontal escavam um mesmo caminho penoso,
escalavrado, demencial e sonhador rumo às concavidades da nossa escuridão e da
nossa solidão lacustre, eterna.
- Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese
Griffith.
King Vidor. John Ford. Sam Peckimpah. Michael Cimino. Quem acompanhou
esta via, a via do nascimento dos Estados Unidos, da violência, da contradição
e da ambiguidade ontológicas, sabe que todas as monstruosidades, excessos, overacting,
subtilezas, etc., que Scorsese poe em marcha, são a matemática exata da experiência
do caos americano. Abraham Lincoln a falar com Trump... visões infernais.
- O Rapaz e a Garça, de Hayao Miyazaki + Fairytale
- Sombras do Velho Mundo, de Aleksandr Sokurov
A tradição do pesadelo e o pesadelo da tradição. Miyazaki
revolve tudo e maravilha tudo. Sokurov destrói tudo e reinicia tudo. Novos e
velhos mundos em luzes proféticas.
(RE) DESCOBERTAS:
– Yakuza no
hakaba: Kuchinashi no hana, de Kinji Fukasaku, 1976
O lirismo é sempre uma reportagem, uma radiografia, uma
ciência, do calor e da tensão do presente do homem em relação ao meio
impassível.
- Nippon-koku Furuyashiki-mura, de Shinsuke Ogawa,
1984
O cuidado com o nascimento do arroz e o cuidado com quem viu
o horror absolutos merecem o mesmo tempo, todo o tempo, e a mesma dedicação,
toda a dedicação. E cuidado. Uma e outra coisa são dependentes. Sublime
conexão.
- Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, 2000
A potência da disponibilidade de almas, da aproximação de
almas, do encontro de almas. As relações acontecem pela disponibilidade. O
cinema acontece pela disponibilidade. A verborreia da alma e o silêncio da
verborreia. A arte mais aparentemente simples é a que mais exige. Leve como uma
pluma. Constantemente alerta. Até à exaustão.
LIVROS:
– A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, 1919
A odisseia da pobreza e da corrupção humanas desembocam no
pegar ao colo um novo bebé, sempre um novo bebé, uma nova luta, uma nova luz. O
milagre constantemente prometido.
- Horácio. Poesia Completa, tradução de Frederico
Lourenço, 2023
Sem comentários apropriados. Uma promessa.
- POESIA, Daniel Faria, 2012
As palavras, o silêncio, a poesia, no tempo anterior à nossa
vinda; nascidas muito antes de chegarmos; antes de termos compreendido.
DISCOS:
- ENTER
THE WU-TANG (36 CHAMBERS) 30TH ANNIVERSARY (COLORED LP W/OBI)
E foi há trinta anos que uma nova humanidade autóctone
cruzou e fundiu hemisférios e continentes e oceanos e céus e espiritualidades e
categorias para acordar uma nova sonoridade arrancada aos silêncios de todos os
desprezados de todos os tugúrios.
EVENTOS:
– STREET OPERA exposição de Khalik Allah, Galeria
Imago / LEFFEST 2023
Sem comentários:
Enviar um comentário