sábado, 24 de maio de 2025

Kevin Grant sobre Enzo G. Castellari

 



Entrada (pequena biografia) de Kevin Grant sobre Enzo G. Castellari no magnífico livro Any Gun Can Play, no contexto do western, ou do Euro-Western:

 

"Provavelmente o maior realizador italiano de filmes de acção, Castellari (adoptou o nome de solteira da sua mão para propósitos profissionais) é o membro com maior sucesso da dinastia cinematográfica dos Girolami. Aprendeu a profissão ao lado do seu pai e como aprendiz de outros realizadores de sucesso como Alberto De Martino. Um pioneiro dos westerns cómicos, Castellari passou para os thrillers urbanos nos anos setenta, um pouco antes de ter reacendido brevemente a chama do Euro-Western com o lírico Keoma, em 1976. (Ocasionalmente aludiu a esse género noutros filmes, prestando uma homenagem directa na aventura pós-apocalíptica The New Barbarians (1983), citando o confronto final de A Fistful of Dollars.) Ele e a sua estrela, Franco Nero, tentaram novamente, mas sem o mesmo sucesso, com Jonathan of the Bears em 1993, e estão a planear outro western já há algum tempo. «Nas cenas de acção nunca deixo nada ao acaso», referiu. «Tudo é pensado e cada mínimo detalhe é verificado duas vezes. A posição da câmara é muito importante para realçar a acção e fazer com que a cena pareça realista.» É irmão do actor Enio Girolami, que regularmente entra nos seus filmes."


[tradução minha]

 

*

 

De facto, nunca ninguém mexeu assim uma câmara de cinema, também nunca ninguém montou assim – técnica e dramaticamente inseparáveis. Só não concordo com a referência a Jonathan of the Bears, que para mim é mais um dos pontos altos de Castellari, com riscos e mergulhos, nomeadamente no grande meio natural e espiritual, no insondável cósmico, absolutamente inauditos na sua obra. Corbucci… Malick… Enzo…

quarta-feira, 21 de maio de 2025

ENCONTRO COM ENZO G. CASTELLARI

por José Oliveira e Marta Ramos


O encontro com os Girolami aconteceu numa manhã solarenga de um domingo no norte de Roma. Rente ao rio Tibre sobe-se de repente uma colina verde e luminosa até ao sossegado bairro de Cassia. Os Girolami são Enzo e Andrea. Enzo G. Castellari é o grande realizador de cinema de acção italiano que, a partir de finais dos anos 50, tocou em quase todos os géneros cinematográficos, arrancando várias pérolas; Andrea é o seu filho, que, tal como o progenitor, também cresceu nos sets de cinema e chegou a assistente de realização do seu pai e de outros filmes importantes. Desde as apresentações informais, tudo neles é terno e amigável. Enzo, um homem com uma vida fascinante, emana uma calma e uma paz consideráveis. Andrea tudo faz para nos fazer sentir em casa. Ambos primam por um sentido de humor fino e sincero e as gargalhadas serão muitas. Na sala de estar, onde nos sentamos para conversar, fica um comovente altar à falecida esposa de Enzo e mãe de Andrea, a escritora Mirella, composto por fotografias, prémios para a sua escrita e outros objectos e arranjos tocantes. Os seus prémios e homenagens misturam-se com os de seu pai, o também realizador Marino Girolami, avô de Andrea. Enzo irá depois mostrar-nos muitas outras coisas fascinantes, desde os seus milhares de desenhos com “a bic” de imagens famosas até a um mural composto por armas dos seus filmes, passando pelo imponente terraço onde se consegue ver Roma por inteiro. E ainda fotografias suas com Tarantino, Stallone, Brad Pitt… Os troféus que o seu pai, um grande campeão no seu tempo, arrancou no boxe… A conversa é divertida, generosa, com Enzo a oferecer-nos todo o tempo e todas as memórias. Como curiosidade, é fascinante visualizar como ele se refere muitas vezes aos seus actores, como se estivesse a falar de esculturas de Michelangelo ou de Bernini. Um intelectual que se diverte como uma criança.  Acabamos com um spaghetti com molho de tomate e parmiggiano cozinhado por Andrea e muitas mais histórias… histórias que poderiam ser infinitas, como a filmografia de Castellari. Spaghetti esse, delicioso, cremoso, que merece um elogio rasgado e verdadeiro do pai. Uma relação muito bonita a deles, um humanismo lancinante. Tal como nos filmes, se virmos bem, não se trata apenas de acção.

Queremos agradecer ao Ronald Perrone a ajuda preciosa na elaboração de algumas questões.



KEOMA

José Oliveira: Na época em que Keoma foi produzido, o género western spaghetti já estava em declínio, havia poucos filmes desses a serem feitos e já não tinham a mesma qualidade de outrora. Costuma-se considerar que Keoma marcou, de certa forma, o fim desse género dentro do género. Tinha consciência dessa ideia de fim de um ciclo? 

A ideia do Franco Nero e a minha, bem como a do produtor, Manolo Bolognini, era fazer o último western, pois já não se faziam mais. Para nós era um género fantástico.  Foi uma pena ter acabado. Mas o Luigi Montefiori e o George Eastman – o actor – escreveram uma história e o produtor deu-me dois argumentistas [Mino Roli e Nico Ducci] para conceberem o argumento, pois nesse momento eu ainda estava a finalizar o The Big Racket e não tinha tempo para o escrever. Ao mesmo tempo começámos imediatamente com a pré-produção, procurámos os lugares para filmar e tudo o resto. Quando chegou o argumento final dos dois escritores, eu li-o todo numa noite e não gostei minimamente. Logo de manhã, disse a toda a gente que era horrível. Portanto, começámos a inventar diariamente as cenas. Afortunadamente um dos três irmãos do John Loffredo [actor de Keoma] era argumentista e foi ele que escreveu todos os diálogos das cenas que inventávamos à noite. Era assim: «amanhã filmaremos uma cena inspirada num grande filme que eu admirava…», repetiremos a mesma cena, mas com o meu estilo. Nós não sabíamos o que viria a seguir, mas quando chegámos à montagem vimos que tudo fora realmente bem pensado. O que me fica foi um tempo em que toda esta invenção foi para nós uma emoção, uma grande emoção.

Marta Ramos: Uma das minhas cenas favoritas é aquela do diálogo entre o Pai e o Filho, num único travelling. Também essa cena foi inventada ou estava na sua mente desde o começo?

Eu inventava a maneira de filmar de manhã, sempre. Começava na casa de banho e prosseguia enquanto o carro me levava ao set. O fundamental era aproveitar as novas ideias que vinham a cada manhã. Por exemplo, quando querem enforcar o Franco, estava lá uma grande e velha máquina, e assim encontrámos logo a arquitectura da cena, pois agrada-me coisas velhas e poeirentas.

M.R.: Seguiram uma certa cronologia ou…

Não… não… logo que o set da Vila estivesse pronto filmávamos todas as cenas desse espaço, agora os interiores, depois os exteriores, de acordo com as possibilidades da produção. E foi sempre assim, nunca filmámos cronologicamente, nem de acordo com um guião.

J.O.: Em Keoma, há sequências belíssimas nas quais o passado e o presente se cruzam, às vezes no interior do mesmo plano. Além das suas habituais influências, os filmes de Ingmar Bergman terão sido uma inspiração?

Sim, é verdade. Eu copiei de toda a gente. [«E o Tarantino copiou dele» intervém o filho, Andrea Girolami, por entre valentes risadas.] É importante ter a impressão de outro filme, para repetires do teu modo. Eu filmo sempre à minha maneira.

M.R.: Desculpe voltar ao assunto, mas lembra-se da inspiração para a cena entre o Pai e o Filho?

A inspiração nasce na discussão com os actores. Blá, blá, blá, nós podemos fazer isto ou aquilo, tu podes actuar daquela maneira… no final do dia, discutimos as cenas do dia seguinte. É sempre importante essa discussão, pois convocamos os grandes filmes de grandes cineastas e eu depois repito à minha maneira.

J.O.: Como foi trabalhar com Woody Strode? Ele falava muito de John Ford?

Maravilhoso, maravilhoso. Um homem maravilhoso. Especialmente porque começámos o filme sem guião, mas eu prometi-lhe: «vou inventar um grande papel para ti!, deves aparecer todos os dias no set.» E ele esteve presente todos os dias e eu inventava cenas para ele. E no final da rodagem ele deu-me como que um Óscar, pois disse-me: «estive todos os dias no set a observar o teu trabalho, e acho que és muito similar ao maior realizador americano, o John Ford». E eu agradeci-lhe.

M.R.: Acho que uma das coisas que me fez apaixonar pelo Keoma foi a banda sonora. Lemos que você usou temas do Leonard Cohen e do Bob Dylan como inspiração para esse tema e para o ambiente em geral. Como é que, depois, os compositores chegaram a essa bela melodia?

Eu preciso da música quando estou a montar. Sempre. Uso a música que eu gosto, pois ainda não tenho a original. Comecei com o Bob Dylan e o Leonard Cohen, procurei a música apropriada nos discos deles, juntamente com o meu montador. No final, os compositores apenas repetiram uma atmosfera idêntica aos temas que eu tinha usado.

M.R.: Lembra-se de músicas específicas do Cohen e do Dylan que tenha usado?

Nem por isso, nem por isso… sempre achei que seria importante usar essas músicas já existentes na montagem, pois escolhi coisas fantásticas, e como sei que seria complicado obter os direitos, elas ajudaram de alguma forma. E deram-me a oportunidade de montar o filme de uma certa maneira. De uma certa maneira musical, sempre. Posteriormente, os irmãos De Angelis repetiram a mesma atmosfera, o mesmo ritmo. Sempre fiz isto em todos os meus filmes, uso música alheia e depois discuto-a com os compositores. Por vezes é bom para eles, pois entendem exactamente o que eu quero. Mas aconteceu ter escolhido umas músicas fantásticas, e os compositores dizerem que era impossível repetir aquilo. Eu pedia-lhes alguma coisa próxima, algo similar… Mas é sempre um grande momento quando chegamos a essa fase de compôr a música, acontecem sempre grandes surpresas. E experimentámos em cada instante, trocávamos o trompete pela bateria ou coisa do género… O Keoma mudou constantemente, diariamente, cada dia apareceu algo novo… e no final tivemos a surpresa de ter um verdadeiro filme. O Franco perguntava-me constantemente o que iria fazer depois, e eu respondia-lhe que não sabia. Agora é isto e depois vê-se. Talvez esta noite eu tenha um sonho e depois passo-o para o filme no dia seguinte.




THE BIG RACKET

J.O.: High Crime não foi o primeiro polizzioteschi, mas foi um marco no género, dando o tom e influenciando os filmes policiais italianos que vieram depois. Em que momento percebeu que esse seria um género que poderia explorar com mais atenção?

Não imediatamente, mas lembro-me que quando esse filme estreou em Roma, levei comigo a minha mulher e a minha filha – e em High Crime a minha filha é a filha do Franco Nero no filme – e eu não sabia que o filme era proibido a quem tivesse menos de catorze anos. Então levei-a de volta a casa e regressei para ver o filme. E como obviamente cheguei atrasado, quando abro a cortina e o filme já está a passar, descubro um mar de gente diante de mim, nos corredores, extasiadas, e mesmo perto do ecrã havia várias pessoas amontoadas. Foi um grande, grande sucesso. E mesmo nesse momento estava a acontecer a perseguição de carros, e no final dessa cena todo o cinema explodiu numa ovação, e eu fiz o mesmo! [Enzo ri-se genuinamente] Enfim, mas voltando a The Big Racket, muita gente diz que é o meu melhor filme, mas é claro que eu prefiro o Keoma. É o meu favorito.

J.O.: Os argumentos dos seus filmes são geralmente escritos por outras pessoas, mas o Enzo gosta de meter sempre o seu cunho pessoal. Nesse sentido, qual foi a sua grande contribuição em The Big Racket?

É verdade, eu reescrevo sempre cada filme. Mesmo que eu não comece desde o início com os argumentistas, eu reescrevo tudo mais tarde, pois quero adaptar tudo exactamente ao meu estilo, como realizador. Transformo os tempos, os momentos, a acção… Muitas vezes os argumentistas diziam-me: «Ah, alteraste a minha cena…» Sim, eu alterei, porque gosto mais do meu jeito. Não consigo filmar o guião de outra pessoa se não tiver o meu toque pessoal.

J.O.: Como foi trabalhar com Fabio Testi? Quais as diferenças entre ele e Franco Nero, com quem fez mais filmes do género?

O Fabio Testi é fisicamente fantástico. É um homem lindíssimo, alto, com uns ombros impressionantes. E muito simpático, muito, muito simpático. O Franco Nero não tem o mesmo físico, pois o Fabio é realmente impressionante. No Franco são os seus olhos, o seu rosto, que impressiona. Mas ambos são muitíssimo amigáveis. Para mim foi sempre um sonho trabalhar com eles. O Franco não consegue expressar muito bem as suas ideias verbalmente, embora tenha boas ideias. Adora filmes e realmente nasceu para ser actor. Mas quando me faz alguma sugestão para uma cena, apesar de se explicar confusamente, eu consigo capturar a sua intenção e entendo perfeitamente o sentido. E geralmente aceito prontamente as suas sugestões, pois são sempre muito interessantes, mas depois concretizo-as à minha maneira, claro. Eu considero que as trocas de ideias com os actores, as conversas, são fundamentais, e ajudam sobremaneira o filme. Devido a isso nota-se que os personagens mudam e se desenvolvem constantemente, pois é um trabalho conjunto.

J.O.: Tal como o Enzo, também nós gostamos muito do Sam Peckinpah, e temos muitos amigos dos Encontros de Cinema do Fundão que também o adoram. Pode falar-nos da influência que ele teve no seu trabalho?

Eu copiei imensas cenas dos seus filmes, imensas! Eu conheci-o aqui em Roma, quando ele estava a fazer um papel num filme do Monte Hellman, onde também participava o Fabio Testi. Mas foi uma desilusão… ele estava bêbado e drogado… um dia apresentaram-me a ele dizendo-lhe: «Este é o Sam Peckinpah italiano», mas ele não teve qualquer reacção, estava totalmente bêbado.




THE INGLORIOUS BASTARDS

J.O.: Como foi trabalhar com figuras singulares como Fred Williamson e Bo Svenson?

Bo era uma grande estrela, e era suposto ser a grande estrela do filme, e começou por comportar-se como tal. Mas percebeu imediatamente, desde o primeiro dia, que só havia um realizador e que era preciso fazer o que esse realizador queria. No começo foi tenso, e eu dizia-lhe: «Sim, isso é uma boa ideia, mas a minha é melhor.» [Risos] E acabava a conversa.  O Bo Svenson tem dois metros, é gigantesco, e o Fred também. Era bonito de ver, especialmente eu metido entre eles os dois [Muitos risos]. Tudo correu de uma forma amigável, ternurenta. Ficámos grandes amigos. Infelizmente soube agora que a sua maravilhosa casa em Los Angeles foi completamente destruída pelos terríveis incêndios. Que pena…

M.R.: Parece-me que para o Enzo, fazer filmes é também reunir um clã, um grupo de amigos, e que isso é importante…

Eu gosto disso, porque quando se trabalha amigavelmente num set, tudo é mais fácil. Esquecemos rapidamente as dificuldades, pois percebemos que é possível fazer de um certo modo, do meu modo, do teu modo… todos os problemas se dissolvem. 

J.O.: Uma das melhores sequências é a das jovens nazis na cascata, que disparam nos protagonistas. Pode falar-nos um pouco dessa mítica cena? Foi filmada em Roma, certo?

Sim, foi perto daqui, a uns 25 Km [Cascate di Monte Gelato, assim se chama o lugar]. Fiz lá muitos filmes, e não só eu como muitos outros cineastas italianos. Agora é um parque muito limpo, está completamente diferente. Mas quando filmámos essa cena era bastante selvagem. Foi uma cena bem divertida de fazer, principalmente aquele momento em que o Fred chega lá e as raparigas vêem aquele negro gigante. Ele grita: «Hey, girls!», e elas começam a disparar…   

J.O.: Foi uma grande surpresa quando o Quentin Tarantino começou a vociferar aos quatro ventos o seu amor por este filme e a confessar que o Enzo era o seu mestre?

Certo dia, um amigo disse-me que o Tarantino tinha dado uma entrevista onde falou sobre os meus filmes. «Os meus filmes?», eu não queria acreditar. «Sim, que o tinhas inspirado das mais diversas formas.» Mais tarde recebo um telefonema do seu advogado a dizer-me que o Quentin queria adquirir os direitos do meu Inglorious Bastards… fantástico. Conheci depois o Quentin no festival de cinema de Veneza [numa retrospectiva chamada Italian Kings of the B`s], onde ele viu o meu filme projectado num grande ecrã pela primeira vez, pois antes só o tinha visto em VHS, quando o descobriu na sua juventude, e depois em DVD. Vimo-lo lado a lado, numa sala cheia de juventude. Ele sabia de memória todos os diálogos, e antecipava-os, e dava-me murros constantemente no meu ombro, gritando «Fuck you, man, I like it!» e coisas do género. No final fiquei com o meu ombro completamente em papa. [Uma explosão de risos]




ESCAPE FROM THE BRONX

J.O.: O universo dos dois filmes realizados no Bronx fazem lembrar Escape from New York, do Carpenter, e algo de banda desenhada. Mas mesmo assim, são filmes absolutamente originais. Teve um orçamento maior para esse filme?

Como sabem, depois de um grande filme do Carpenter, ou de um grande sucesso americano daquela época, a indústria italiana fazia logo uns vinte e cinco filmes iguais por semana [Risos]… para tentar repetir o sucesso. Mas muito poucos eram bem-sucedidos. Eu tive sorte, pois os meus filmes do Bronx foram um grande sucesso nos Estados Unidos. Um pouco por toda a parte, mas principalmente na América, foi inacreditável. Eu tive um problema de plágio com um dos meus filmes de tubarões [No caso, com L'ultimo squalo] nos Estados Unidos, pois consideraram que havia muitas semelhanças com o Jaws, 1 e 2. Fomos a tribunal por causa disso, e a Universal conseguiu parar a exibição do meu filme. Infelizmente, pois o filme abriu com 3 milhões de dólares só no primeiro fim-de-semana. Um sucesso inacreditável… Ainda ontem me mostraram uma fotografia de um cinema de Madrid onde este Jaws 3 – foi assim o seu título internacional – estreou, e havia três filas que davam a volta ao cinema.

J.O.: Nos dois filmes do Bronx escolheu para o papel principal alguém que não é actor, Mark Gregory. Onde o encontrou?

Num ginásio. Eu li o argumento que o produtor Fabrizio De Angelis me entregou, e obviamente que era parecido com o trabalho do Carpenter, mas percebi que resultaria se tivéssemos um actor principal novo e poderoso. Nessa altura, no ginásio que eu frequentava, estava sempre a olhar para um rapaz jovem, sempre sozinho no seu canto, sem falar com ninguém, a levantar pesos. Mas tinha um visual fantástico, muito alto, cabelo comprido, físico imponente. E disse aos produtores que o nosso personagem já estava no meu ginásio. E quando os produtores o conheceram perceberam logo o que eu queria dizer, pois o papel exigia alguém com aquele poderio. Um puto de dezassete anos que parecia um mastodonte, e ainda por cima porreiro, serviu-nos na perfeição.

J.O.: E como foi trabalhar com Henry Silva, com aquele rosto incrível e impassível?  

Super simpático. Sempre a brincar e a contar-me anedotas. Sempre a falar de mulheres. 

J.O.: Em Escape From Bronx temos um presidente que quer limpar a cidade, um pouco como os novos fascistas da actualidade. O grande argumentista Tito Carpi e o Enzo inspiraram-se em algum ditador concreto ou é mais uma figura universal?

Nem por isso, eles são todos iguais. [Risos]

J.O.: Como era trabalhar com o Tito Carpi, que foi um grande amigo seu e um dos mais importantes colaboradores?

Ele já morreu, mas vivia perto de mim, e ou ele vinha à minha casa para trabalharmos ou eu ia à dele. Lembro-me de um filme, La battaglia d'Inghilterra, em que modificámos o argumento todo em Madrid, pois era uma co-produção espanhola. Ficámos uma semana fechados num hotel até terminarmos o guião. Lembro-me que o pobre Tito ficou contente de ir a Madrid para conhecer a cidade, ir ao museu do Prado, mas não, não houve tempo… foi sempre a escrever, escrever sem parar.

J.O.: A contagem de mortes na versão uncut do filme chega às 174, algumas bastante violentas. O resultado é fantástico, e as sequências de acção são algumas das melhores da sua carreira. Foi divertido inventar todas essas mortes?

Foi mesmo muito divertido. Adorei!


*




J.O.: Li que o Enzo montava o seu filme durante as filmagens e, no fim destas, tinha uma versão praticamente pronta para uma primeira exibição. Não me lembro de algo semelhante… Como surgiu esse método inovador?

Dois ou três dias depois de terminarmos as rodagens o filme estava montado. Para mim esse método era essencial, porque estava tudo fresco na minha mente, desde as mudanças feitas durante as cenas até ficar a perceber que tinha de filmar novas coisas, que tinha de inventar novas cenas, pois não me agradava certas coisas que tinha filmado. Era maravilhoso montar todas as noites.

J.O.: Mas não ficava cansado?

Não, quando se faz o que se gosta…

J.O.: Os seus estudos em Belas-Artes e em arquitectura ajudaram a formar a sua criatividade absolutamente impagável?

Ajudaram-me imenso! Especialmente quando na pré-produção de um filme eu explicava o que queria aos cenógrafos, aos responsáveis do guarda-roupa… eu explicava-lhes tudo com o meu lápis, fazia storyboards… Estudei na Academia de Belas-Artes nos anos 50, onde todos os professores eram grandes pintores, portanto, vivi imerso na grande arte desse tempo. Tive sorte de sempre ter estudado em meios artísticos – comecei no Liceo Artistico, depois na Academia de Belas-Artes, e finalmente tirei Arquitectura na Villa Borghese. Tive sorte.


Fotografias: José Oliveira
A primeira no escritório de Enzo G. Castellari; a segunda, no mesmo escritório, mural com armas utilizadas nos seus filmes e diversas outras recordações.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

para James Mangold, forever

 




James Mangold tem a mão terna e sensível dos grandes cantadores, Whitman ou Frank Capra

Cantadores que são contadores de histórias simples e extraordinárias ao pé da lareira

A Complete Unknown é uma crónica dos bons sentimentos

Da busca do tempo perdido para ainda tentar salvar este tempo

O olhar sempre convulso, viajante e temerário do Dylan de Chalamet

O olhar e todos os poros suplicantes por humanidade do Pete Seeger de Norton

Esse Peter Seeger que dá tudo de si para tudo ser possível para o Outro

Totalmente disponível, apagado, simples e magnânimo, porventura a maior personagem de Mangold deste Sly

As visitas ao hospital para estar com o príncipe dos Outros, Woody Guthrie

A disponibilidade absoluta, o tempo paralisado, a partilha sem nome

O reconhecimento e a paz

O Tempo das Suaves (e Corajosas e Vitais) Raparigas, o furacão da Baez de Monica Barbaro e o anjo clamante da Sylvie de Elle Fanning

O platónico e o carnívoro, os olhares puros com Sylvie e os cantares cortantes com Baez

No centro de um turbilhão musical e oral, e depois eléctrico, as coisas que não se dizem, só se entreveem, sussurradas, percebidas, absolutas

A guerra fora do campo e a guerra pessoal, víscera, que têm a mesma importância

O fim do mundo e o começo do mundo

Eu sou um Outro, Rimbaud

A necessidade de se morrer e de se nascer constantemente

Mangold é um classicista esburacado e terno guerreiro, com as tremendas elipses no coração gigantesco

A despedida final a Woody que não é despedida mas sim assunção e plenitude, o gesto de amor no cabelo ou no rosto, como num filme do outro Frank, o Borzage

Foi assim no conto de fadas justiceiro que é Copland

Foi assim até na danação de Logan

Foi assim no embate nuclear entre carne, inteligência, ciência e medo do Ford v Ferrari

A técnica só é técnica e só interessa quando existe vida além da artificial