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O encontro com os Girolami aconteceu numa manhã solarenga de um domingo no norte de Roma. Rente ao rio Tibre sobe-se de repente uma colina verde e luminosa até ao sossegado bairro de Cassia. Os Girolami são Enzo e Andrea. Enzo G. Castellari é o grande realizador de cinema de acção italiano que, a partir de finais dos anos 50, tocou em quase todos os géneros cinematográficos, arrancando várias pérolas; Andrea é o seu filho, que, tal como o progenitor, também cresceu nos sets de cinema e chegou a assistente de realização do seu pai e de outros filmes importantes. Desde as apresentações informais, tudo neles é terno e amigável. Enzo, um homem com uma vida fascinante, emana uma calma e uma paz consideráveis. Andrea tudo faz para nos fazer sentir em casa. Ambos primam por um sentido de humor fino e sincero e as gargalhadas serão muitas. Na sala de estar, onde nos sentamos para conversar, fica um comovente altar à falecida esposa de Enzo e mãe de Andrea, a escritora Mirella, composto por fotografias, prémios para a sua escrita e outros objectos e arranjos tocantes. Os seus prémios e homenagens misturam-se com os de seu pai, o também realizador Marino Girolami, avô de Andrea. Enzo irá depois mostrar-nos muitas outras coisas fascinantes, desde os seus milhares de desenhos com “a bic” de imagens famosas até a um mural composto por armas dos seus filmes, passando pelo imponente terraço onde se consegue ver Roma por inteiro. E ainda fotografias suas com Tarantino, Stallone, Brad Pitt… Os troféus que o seu pai, um grande campeão no seu tempo, arrancou no boxe… A conversa é divertida, generosa, com Enzo a oferecer-nos todo o tempo e todas as memórias. Como curiosidade, é fascinante visualizar como ele se refere muitas vezes aos seus actores, como se estivesse a falar de esculturas de Michelangelo ou de Bernini. Um intelectual que se diverte como uma criança. Acabamos com um spaghetti com molho de tomate e parmiggiano cozinhado por Andrea e muitas mais histórias… histórias que poderiam ser infinitas, como a filmografia de Castellari. Spaghetti esse, delicioso, cremoso, que merece um elogio rasgado e verdadeiro do pai. Uma relação muito bonita a deles, um humanismo lancinante. Tal como nos filmes, se virmos bem, não se trata apenas de acção.
KEOMA
José Oliveira: Na época em
que Keoma foi produzido, o género western spaghetti já estava em declínio,
havia poucos filmes desses a serem feitos e já não tinham a mesma qualidade de
outrora. Costuma-se considerar que Keoma marcou, de certa forma, o fim desse
género dentro do género. Tinha consciência dessa ideia de fim de um ciclo?
A ideia do Franco Nero e a
minha, bem como a do produtor, Manolo Bolognini, era fazer o último western,
pois já não se faziam mais. Para nós era um género fantástico. Foi uma pena ter acabado. Mas o Luigi
Montefiori e o George Eastman – o actor – escreveram uma história e o produtor
deu-me dois argumentistas [Mino Roli e Nico Ducci] para conceberem o argumento,
pois nesse momento eu ainda estava a finalizar o The Big Racket e não
tinha tempo para o escrever. Ao mesmo tempo começámos imediatamente com a
pré-produção, procurámos os lugares para filmar e tudo o resto. Quando chegou o
argumento final dos dois escritores, eu li-o todo numa noite e não gostei
minimamente. Logo de manhã, disse a toda a gente que era horrível. Portanto,
começámos a inventar diariamente as cenas. Afortunadamente um dos três irmãos
do John Loffredo [actor de Keoma] era argumentista e foi ele que
escreveu todos os diálogos das cenas que inventávamos à noite. Era assim:
«amanhã filmaremos uma cena inspirada num grande filme que eu admirava…»,
repetiremos a mesma cena, mas com o meu estilo. Nós não sabíamos o que viria a
seguir, mas quando chegámos à montagem vimos que tudo fora realmente bem
pensado. O que me fica foi um tempo em que toda esta invenção foi para nós uma
emoção, uma grande emoção.
Marta Ramos: Uma das minhas
cenas favoritas é aquela do diálogo entre o Pai e o Filho, num único travelling.
Também essa cena foi inventada ou estava na sua mente desde o começo?
Eu inventava a maneira de
filmar de manhã, sempre. Começava na casa de banho e prosseguia enquanto o
carro me levava ao set. O fundamental era aproveitar as novas ideias que
vinham a cada manhã. Por exemplo, quando querem enforcar o Franco, estava lá
uma grande e velha máquina, e assim encontrámos logo a arquitectura da cena,
pois agrada-me coisas velhas e poeirentas.
M.R.: Seguiram uma certa
cronologia ou…
Não… não… logo que o set
da Vila estivesse pronto filmávamos todas as cenas desse espaço, agora os
interiores, depois os exteriores, de acordo com as possibilidades da produção.
E foi sempre assim, nunca filmámos cronologicamente, nem de acordo com um guião.
J.O.: Em Keoma, há
sequências belíssimas nas quais o passado e o presente se cruzam, às vezes no
interior do mesmo plano. Além das suas habituais influências, os filmes de
Ingmar Bergman terão sido uma inspiração?
Sim, é verdade. Eu copiei de
toda a gente. [«E o Tarantino copiou dele» intervém o filho, Andrea Girolami,
por entre valentes risadas.] É importante ter a impressão de outro filme, para
repetires do teu modo. Eu filmo sempre à minha maneira.
M.R.: Desculpe voltar ao
assunto, mas lembra-se da inspiração para a cena entre o Pai e o Filho?
A inspiração nasce na
discussão com os actores. Blá, blá, blá, nós podemos fazer isto ou aquilo, tu
podes actuar daquela maneira… no final do dia, discutimos as cenas do dia
seguinte. É sempre importante essa discussão, pois convocamos os grandes filmes
de grandes cineastas e eu depois repito à minha maneira.
J.O.: Como foi trabalhar com
Woody Strode? Ele falava muito de John Ford?
Maravilhoso, maravilhoso. Um
homem maravilhoso. Especialmente porque começámos o filme sem guião, mas eu
prometi-lhe: «vou inventar um grande papel para ti!, deves aparecer todos os
dias no set.» E ele esteve presente todos os dias e eu inventava cenas
para ele. E no final da rodagem ele deu-me como que um Óscar, pois disse-me:
«estive todos os dias no set a observar o teu trabalho, e acho que és
muito similar ao maior realizador americano, o John Ford». E eu agradeci-lhe.
M.R.: Acho que uma das
coisas que me fez apaixonar pelo Keoma foi a banda sonora. Lemos que
você usou temas do Leonard Cohen e do Bob Dylan como inspiração para esse tema
e para o ambiente em geral. Como é que, depois, os compositores chegaram a essa
bela melodia?
Eu preciso da música quando
estou a montar. Sempre. Uso a música que eu gosto, pois ainda não tenho a
original. Comecei com o Bob Dylan e o Leonard Cohen, procurei a música
apropriada nos discos deles, juntamente com o meu montador. No final, os
compositores apenas repetiram uma atmosfera idêntica aos temas que eu tinha
usado.
M.R.: Lembra-se de músicas
específicas do Cohen e do Dylan que tenha usado?
THE BIG RACKET
J.O.: High Crime não
foi o primeiro polizzioteschi, mas foi um marco no género, dando o tom e
influenciando os filmes policiais italianos que vieram depois. Em que momento percebeu
que esse seria um género que poderia explorar com mais atenção?
Não imediatamente, mas
lembro-me que quando esse filme estreou em Roma, levei comigo a minha mulher e
a minha filha – e em High Crime a minha filha é a filha do Franco
Nero no filme – e eu não sabia que o filme era proibido a quem tivesse menos de
catorze anos. Então levei-a de volta a casa e regressei para ver o filme. E
como obviamente cheguei atrasado, quando abro a cortina e o filme já está a
passar, descubro um mar de gente diante de mim, nos corredores, extasiadas, e
mesmo perto do ecrã havia várias pessoas amontoadas. Foi um grande, grande
sucesso. E mesmo nesse momento estava a acontecer a perseguição de carros, e no
final dessa cena todo o cinema explodiu numa ovação, e eu fiz o mesmo! [Enzo
ri-se genuinamente] Enfim, mas voltando a The Big Racket, muita gente
diz que é o meu melhor filme, mas é claro que eu prefiro o Keoma. É o
meu favorito.
J.O.: Os argumentos dos seus
filmes são geralmente escritos por outras pessoas, mas o Enzo gosta de meter
sempre o seu cunho pessoal. Nesse sentido, qual foi a sua grande contribuição
em The Big Racket?
É verdade, eu reescrevo
sempre cada filme. Mesmo que eu não comece desde o início com os argumentistas,
eu reescrevo tudo mais tarde, pois quero adaptar tudo exactamente ao meu
estilo, como realizador. Transformo os tempos, os momentos, a acção… Muitas
vezes os argumentistas diziam-me: «Ah, alteraste a minha cena…» Sim, eu
alterei, porque gosto mais do meu jeito. Não consigo filmar o guião de outra
pessoa se não tiver o meu toque pessoal.
J.O.: Como foi trabalhar com
Fabio Testi? Quais as diferenças entre ele e Franco Nero, com quem fez mais
filmes do género?
O Fabio Testi é fisicamente
fantástico. É um homem lindíssimo, alto, com uns ombros impressionantes. E
muito simpático, muito, muito simpático. O Franco Nero não tem o mesmo físico,
pois o Fabio é realmente impressionante. No Franco são os seus olhos, o seu
rosto, que impressiona. Mas ambos são muitíssimo amigáveis. Para mim foi sempre
um sonho trabalhar com eles. O Franco não consegue expressar muito bem as suas
ideias verbalmente, embora tenha boas ideias. Adora filmes e realmente nasceu
para ser actor. Mas quando me faz alguma sugestão para uma cena, apesar de se
explicar confusamente, eu consigo capturar a sua intenção e entendo
perfeitamente o sentido. E geralmente aceito prontamente as suas sugestões,
pois são sempre muito interessantes, mas depois concretizo-as à minha maneira,
claro. Eu considero que as trocas de ideias com os actores, as conversas, são
fundamentais, e ajudam sobremaneira o filme. Devido a isso nota-se que os
personagens mudam e se desenvolvem constantemente, pois é um trabalho conjunto.
J.O.: Tal como o Enzo,
também nós gostamos muito do Sam Peckinpah, e temos muitos amigos dos Encontros
de Cinema do Fundão que também o adoram. Pode falar-nos da influência que ele
teve no seu trabalho?
THE INGLORIOUS
BASTARDS
J.O.: Como foi trabalhar com
figuras singulares como Fred Williamson e Bo Svenson?
Bo era uma grande estrela, e
era suposto ser a grande estrela do filme, e começou por comportar-se como tal.
Mas percebeu imediatamente, desde o primeiro dia, que só havia um realizador e
que era preciso fazer o que esse realizador queria. No começo foi tenso, e eu
dizia-lhe: «Sim, isso é uma boa ideia, mas a minha é melhor.» [Risos] E acabava
a conversa. O Bo Svenson tem dois
metros, é gigantesco, e o Fred também. Era bonito de ver, especialmente eu
metido entre eles os dois [Muitos risos]. Tudo correu de uma forma amigável,
ternurenta. Ficámos grandes amigos. Infelizmente soube agora que a sua
maravilhosa casa em Los Angeles foi completamente destruída pelos terríveis
incêndios. Que pena…
M.R.: Parece-me que para o
Enzo, fazer filmes é também reunir um clã, um grupo de amigos, e que isso é
importante…
Eu gosto disso, porque
quando se trabalha amigavelmente num set, tudo é mais fácil. Esquecemos
rapidamente as dificuldades, pois percebemos que é possível fazer de um certo
modo, do meu modo, do teu modo… todos os problemas se dissolvem.
J.O.: Uma das melhores
sequências é a das jovens nazis na cascata, que disparam nos protagonistas.
Pode falar-nos um pouco dessa mítica cena? Foi filmada em Roma, certo?
Sim, foi perto daqui, a uns
25 Km [Cascate di Monte Gelato, assim se chama o lugar]. Fiz lá muitos filmes,
e não só eu como muitos outros cineastas italianos. Agora é um parque muito
limpo, está completamente diferente. Mas quando filmámos essa cena era bastante
selvagem. Foi uma cena bem divertida de fazer, principalmente aquele momento em
que o Fred chega lá e as raparigas vêem aquele negro gigante. Ele grita: «Hey,
girls!», e elas começam a disparar…
J.O.: Foi uma grande
surpresa quando o Quentin Tarantino começou a vociferar aos quatro ventos o seu
amor por este filme e a confessar que o Enzo era o seu mestre?
ESCAPE FROM THE BRONX
J.O.: O universo dos dois
filmes realizados no Bronx fazem lembrar Escape from New York, do
Carpenter, e algo de banda desenhada. Mas mesmo assim, são filmes absolutamente
originais. Teve um orçamento maior para esse filme?
Como sabem, depois de um
grande filme do Carpenter, ou de um grande sucesso americano daquela época, a indústria
italiana fazia logo uns vinte e cinco filmes iguais por semana [Risos]… para
tentar repetir o sucesso. Mas muito poucos eram bem-sucedidos. Eu tive sorte,
pois os meus filmes do Bronx foram um grande sucesso nos Estados Unidos. Um
pouco por toda a parte, mas principalmente na América, foi inacreditável. Eu
tive um problema de plágio com um dos meus filmes de tubarões [No caso, com L'ultimo
squalo] nos Estados Unidos, pois consideraram que havia muitas
semelhanças com o Jaws, 1 e 2. Fomos a tribunal por causa disso, e a
Universal conseguiu parar a exibição do meu filme. Infelizmente, pois o filme
abriu com 3 milhões de dólares só no primeiro fim-de-semana. Um sucesso
inacreditável… Ainda ontem me mostraram uma fotografia de um cinema de Madrid
onde este Jaws 3 – foi assim o seu título internacional – estreou, e havia
três filas que davam a volta ao cinema.
J.O.: Nos dois filmes do
Bronx escolheu para o papel principal alguém que não é actor, Mark Gregory. Onde
o encontrou?
Num ginásio. Eu li o
argumento que o produtor Fabrizio De Angelis me entregou, e obviamente que era
parecido com o trabalho do Carpenter, mas percebi que resultaria se tivéssemos
um actor principal novo e poderoso. Nessa altura, no ginásio que eu
frequentava, estava sempre a olhar para um rapaz jovem, sempre sozinho no seu
canto, sem falar com ninguém, a levantar pesos. Mas tinha um visual fantástico,
muito alto, cabelo comprido, físico imponente. E disse aos produtores que o
nosso personagem já estava no meu ginásio. E quando os produtores o conheceram
perceberam logo o que eu queria dizer, pois o papel exigia alguém com aquele
poderio. Um puto de dezassete anos que parecia um mastodonte, e ainda por cima
porreiro, serviu-nos na perfeição.
J.O.: E como foi trabalhar
com Henry Silva, com aquele rosto incrível e impassível?
Super simpático. Sempre a
brincar e a contar-me anedotas. Sempre a falar de mulheres.
J.O.: Em Escape From
Bronx temos um presidente que quer limpar a cidade, um pouco como os novos
fascistas da actualidade. O grande argumentista Tito Carpi e o Enzo
inspiraram-se em algum ditador concreto ou é mais uma figura universal?
Nem por isso, eles são todos
iguais. [Risos]
J.O.: Como era trabalhar com
o Tito Carpi, que foi um grande amigo seu e um dos mais importantes
colaboradores?
Ele já morreu, mas vivia
perto de mim, e ou ele vinha à minha casa para trabalharmos ou eu ia à dele.
Lembro-me de um filme, La battaglia d'Inghilterra, em que modificámos o
argumento todo em Madrid, pois era uma co-produção espanhola. Ficámos uma
semana fechados num hotel até terminarmos o guião. Lembro-me que o pobre Tito
ficou contente de ir a Madrid para conhecer a cidade, ir ao museu do Prado, mas
não, não houve tempo… foi sempre a escrever, escrever sem parar.
J.O.: A contagem de mortes
na versão uncut do filme chega às 174, algumas bastante violentas. O
resultado é fantástico, e as sequências de acção são algumas das melhores da
sua carreira. Foi divertido inventar todas essas mortes?
J.O.: Li que o Enzo montava
o seu filme durante as filmagens e, no fim destas, tinha uma versão
praticamente pronta para uma primeira exibição. Não me lembro de algo
semelhante… Como surgiu esse método inovador?
Dois ou três dias depois de
terminarmos as rodagens o filme estava montado. Para mim esse método era
essencial, porque estava tudo fresco na minha mente, desde as mudanças feitas
durante as cenas até ficar a perceber que tinha de filmar novas coisas, que
tinha de inventar novas cenas, pois não me agradava certas coisas que tinha
filmado. Era maravilhoso montar todas as noites.
J.O.: Mas não ficava
cansado?
Não, quando se faz o que se
gosta…
J.O.: Os seus estudos em Belas-Artes
e em arquitectura ajudaram a formar a sua criatividade absolutamente impagável?
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