“Tudo parece perdido”
Começa assim a sinopse de As Bodas de Deus que César Monteiro reuniu em volume com os argumentos de Le Bassin de JW e destas mesmas Bodas de Deus, em Outubro de 1997, cerca de dois anos antes da estreia de As Bodas no Festival de Cannes.
A frase funciona para João de Deus tal como o vemos na Cena I, esfarrapado e hirsuto, com uma lata de sardinha em conserva, um naco de pão e meia garrafa de tinto rasca. Quem se lembra como ele acabava na Comédia de Deus não se pode espantar muito.
Mas a frase também funciona para João César Monteiro que não conseguiu levar a cabo em 1995 o seu projecto de filmar A Comédia e As Bodas como um só filme, em duas partes, a primeira em Lisboa como viria a acontecer e a segunda em Paris como nunca viria a acontecer. As peripécias parisienses foram tais, aí por 96-97, que João César teve que desistir. Chegou a pensar que a “teologia de Deus” ficaria incompleta e apagou as mágoas em Le Bassin de JW, filmado em Maio e Junho de 1997. O péssimo acolhimento reservado a esse filme, a “desorientação” (sincera ou fictícia) que o realizador disse ter experimentado durante e após Le Bassin, a impossibilidade de retomar em Paris as filmagens de As Bodas de Deus, levaram-no a considerar que para ele, como para o seu personagem “tudo parecia perdido”.
Até que “in dulce jubilo”, num “velho parque solitário e gelado” duas sombras se encontram: a de Deus e do Enviado de Deus, novamente Luís Miguel Cintra, agora sob a aparência de um oficial da marinha mercante. “Num velho parque solitário e gelado” é a tradução literal do primeiro verso do conhecido poema de Verlaine Colloque Sentimental. “Dans un vieux parc solitaire et glacé / deux formes ont tout à l’heure passé”. Só que João de Deus e o Enviado não são propriamente amantes desunidos, como em Verlaine e o parque está longe de ser solitário e gelado. É uma mata frondosa (Sintra) junto a um lago numa tarde soalheira. Da sinopse ao filme passou-se da solidão e do gelo à luz e ao sol.
Mas Verlaine não foi citado por acaso. Ainda João de Deus está a contar as notas, quando ouve o ruído de um corpo a cair ao lago. É uma menina chamada Joana (Rita Durão). Por causa de Joana, João só por milagre (mais outro milagre) não ficou sem o dinheiro. Mas não se salva uma vida em vão. Quando a roda da fortuna girou (nos três filmes girou sempre contra ele) e foi parar com os ossos à cadeia, Joana, que desapareceu quase no início do filme (entregue a boas freiras pelos bons cuidados do seu benfeitor) regressa para ser a única visita que o não deixa. Com a delicadeza de antiga amante (que, no filme, nunca foi) satisfaz-lhe os pedidos carnais. “Será da minha vista ou as maminhas também te cresceram?” (...) Achas que posso ver só uma? Tenho estado a pão e laranjas” - Joana faz-lhe a vontade. “São pequeninas”, comenta com algum enleio. “São as únicas. Há tanta beleza nelas que se não as guardas depressa dá-me para aqui o badagaio”. À hora da despedida, pedido ainda mais íntimo: um pequenino fio de Ariane, o que, quem tenha a memória do “Livro dos Pensamentos” da Comédia, já sabe o que quer dizer. E é depois de Joana levar a mão tão baixo para satisfazer o pedido de João, que este lhe diz a famosa frase do final do Pickpocket de Bresson: “Oh Jeanne, pour aller jusqu’à toi, quel drôle de chemin il m’a fallu prendre”.
Mais uma vez tudo é uno e só mentes rasteiras podem opor - ou mesmo justapor - maminhas e pintelhos ao apelo da Graça. Em Bresson, tratava-se de um ladrão e ninguém se chocou. Aqui, no caso de um erotómano de tendências pedófilas, voltaram com a conversa da abjecção e do sublime. Mas toda a sequência é celestial, e é esse o diálogo que rima com o poema de Verlaine. Joana é Joana de Deus. E é ela quem espera João à saída da cadeia para as bodas que César pensou filmar (estão no script publicado) e avisadamente não filmou. Porque a comédia acabou com a citação de Bresson e só resta um casal e um burrinho, como na Fuga para o Egipto ou como no final de Le Bassin de JW.
Entre a sequência do salvamento a as da prisão, decorre quase todo o filme em tom aparentemente mais “grazioso” do que os dípticos precedentes.
Rico, João de Deus mudou de classe e passou a Barão de Deus. O mundo dos ricos não é o mundo dos pensionistas nem o dos sorveteiros. “Deus não dorme” diz-lhe Joana quando lhe conta a vida, outra vez sob fundo de mar. “Mas eu durmo”, responde ele. Segue-se o fabuloso plano da romã - a imagem mais inesquecível deste filme - a cada um, cada metade, como só será evidente no final.
Vão começar os sonos e os sonhos do Barão, que incluem uma princesa polaca e um príncipe árabe. O Barão julga-se numa comédia e está numa tragédia. Ganha ao jogo e perde aos amores, depois de três das sequências mais irrisórias da obra de Monteiro, por uma vez seduzido pêlos fantasmas de Buñuel.
Retenham-se:
a) A meia-hora no pavilhão das rosas, quando a princesa Elena (Joana Azevedo) proporciona a João de Deus a visão da sarça ardente.
b) A sequência da “Traviata” em São Carlos, com os bonecos presidenciais, o anão, os manejos eróticos de João de Deus e da princesa no camarote e a câmara a subir até aos anjos dourados que encimam o camarote real. “Queremos Deus” cantam as plateias revoltadas. “Je deviens un opera fabuleux”. Mas aproxima-se a hora da sua perda. “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?”
c) A “noite de amor” entre a Princesa e João. Deus exigiu demais de si próprio ou pelo menos exigiu tanto como o realizador ao actor. Filmar uma cena de cama com um belo corpo feminino nu e um corpo masculino, igualmente nu, mas de magreza e idade obscenas, podia ser uma das cenas mais abjectas jamais mostradas. Nunca o é, por um prodígio de “mise-en-scéne” inigualável. João de Deus dorme pela última vez. Quando acorda, já a princesa e os milhões vão longe e o monstro de Baal não deita fumos, nem mete medo.
Mais uma vez, João de Deus é expulso do Paraíso. Só lhe resta procurar o seu velho Lívio, o enviado de Deus, para tornar crível a história da sua fortuna e para que este o ajude uma vez mais, com sapatos de defunto.
Mas, no termo da trilogia, o seu duplo, doido varrido, e assumindo-se por Jesus Cristo depois da Ascensão, já não o reconhece e expulsa-o também. Nem Deus deve tentar tanto a Deus. E as últimas palavras do Enviado são os versos: “Quando eu subi aos céus / Disse para todos os mortais / Fodam-se vocês agora / Que a mim já não me fodem mais”.
Faltava o tema do Nosferatu. E ele vem. Nas fantásticas contorções de João de Deus na cela, ouvindo “E lucevan le stelle” da Tosca de Puccini. A citação do discípulo de Nosferatu (o das moscas) é óbvia. Mas João de Deus não espera nem convoca o Maligno. É Joana quem o vem esperar.
Na sinopse, João César Monteiro concluiu “Tudo é matéria de gelado, quod erat demonstrandum”. Mas isso era quando pensava terminar o filme no cume gelado da serra da Estrela. Ao terminá-lo numa curva do caminho (“morrer e só não ser visto”, como dizia Pessoa”), reenviou a trilogia ao mesmo signo com que a iniciara: a Mãe de Deus e os pobres de Deus, esses que “coitadinhos” vão e vêm, vêm e vão, e Dafné acaba por buscar, à hora da morte, para verem face a face o que nesta vida só puderam ver como num espelho. Ou como num filme, que é também para isso ou talvez só para isso, que o cinema serve.
O eterno retorno. Ou, já que tanto citei, “pagar para ver”, como se diz no poker e no filme, João César Monteiro pagou, sabendo – como nos outros filmes da trilogia – que só Deus pode ver tudo e que esse é o principio essencial da tragédia.
JOÃO BÉNARD DA COSTA
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