segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Recordações da Casa Amarela. Mesmo quem não leu muito, lembra-se logo de Dostoievsky e das Recordações da Casa dos Mortos. Sabe que não o vão levar para o canto da lareira e que a viagem não vai ser agradável. Casa Amarela porquê? A legenda seguinte – ainda estamos mergulhados no negro mais negro – esclarece: “Na minha terra chamavam casa amarela à casa onde guardavam os presos. Por vezes, quando brincávamos na rua, nós, crianças, lançávamos olhares furtivos para as grades escuras e silenciosas das janelas altas e, com o coração apertado, balbuciávamos: ‘Coitadinhos’...”.

Decorre o genérico. Ouvimos uma flauta, sons estranhos, gritos. A casa amarela não é uma prisão. É um manicómio. João de Deus já nos está a falar de lá, quando diz em off um texto de Céline (Mort à Crédit). Mas a luz chega à tela, e o que se inicia é um flash-back. Vagaroso travelling sobre Lisboa, filmada do Tejo, descobrindo a parte mais bela da cidade, do Terreiro do Paço à Madre de Deus. Casas velhas? Como depois corrigirá Dona Violeta “barrocas Senhor João. Isto foi casa de marqueses e marquesas, de príncipes de Portugal”. Ninguém está a brincar, muito menos o realizador. Durante o filme, vezes sem conta, mergulhamos nestes bairros, em ruas, praças e becos. Tudo tão estranho, tão nosso desconhecido. Lisboa tem um verso e um reverso. O verso vê-se do rio e é bom para os poetas. O reverso vê-se em terra e é bom para os pintores. A cidade é secretíssima. Quem vê caras não vê corações. Para lá das fachadas, começam as surpresas. Fiquem os turistas com a ville blanche. Quem cá morrer sabe como tudo é escuro. Tão escuro que, no final – quando João de Deus reencarna em Nosferatu – João César não precisou de qualquer efeito para o enquadrar em décor expressionista. Murnau –para já não falar de Robert Wiene – precisou de estúdios e de grandes decoradores. Para João César, bastou-lhe colocar a câmara, enquadrar rigorosamente, e esperar pela luz. Os milagres acontecem. O poster do filme – uma reprodução do quadro de Grosz John der Frauenmöde pintado em 1918 – não foi modelo do filme. Parece, antes cópia dele. As artes têm, às vezes coincidências singulares.

O travelling do rio, não acaba, por acaso, na Madre de Deus. Também não é por acaso que a sequência seguinte se passa numa capela, dedicada a Nossa Senhora, e que a primeira imagem que vemos nela é a de Nossa Senhora. Vemos mesmo Nossa Senhora antes de veremos João de Deus. É que Recordações da Casa Amarela é também – eu tenderia a dizer é sobretudo – um filme sobre a Mãe. A Mãe é o tema central destas Recordações. Por isso, o final do travelling faz raccord com a imagem barroca de Nossa Senhora. Grande plano, levemente em contre plongée. Corte e contra-plano. Quem vê a Virgem é João de Deus que conhecíamos de voz (o longo monólogo dos percevejos) mas só agora conhecemos em carne e osso. Está sentado na penumbra da igreja “ancestral, silenciosíssima e vazia”. Levanta-se devagar e vai-se embora, com paragem pela pia de água benta e pela caixa de esmolas. Depois de muita palavra, muito silêncio. É possível que o espectador levado pela provocação – ou pela truculência – do verbo abra mais os ouvidos do que os olhos. Será nossa culpa, não do realizador. Não se abre um filme com uma igreja por acaso. Descobriremos porquê muito mais adiante.

Mais adiante. Apôs a sequência da leitaria com o Pom-Pom e Mimi, ou seja com o cãozinho e com a pêga. João de Deus não abriu a boca durante essa conversa de bairro, supostamente realista (até se fala do “nosso Benfica”). Gente tacanha não vê mais nada, senão fado e futebol. Mas quando João de Deus se vai embora, Mimi, reflectida num enorme espelho oval, dirige o olhar na direcção dele e fica muito tempo a vê-lo sem que ele a veja. Mais tarde, dirá: “Vejo-o quase todos os dias na rua ou na leitaria. Reparei em si porque anda sempre muito metido consigo. Não fala com ninguém”. “Falo, mas não se dá por isso”, responde João de Deus. Nesse plano do espelho, tivemos o primeiro sinal de atenções sem palavras. Aquela que depois dirá, em tradução da Boheme, “chamam-me Mimi”, é a primeira pessoa no filme a reparar em João de Deus, a protegê-lo maternalmente (o espelho oval), imagem recorrente dos filmes de César Monteiro.

E aqui faço um parêntesis cinéfilo. Se os críticos mais atentos descobriram (está no filme a rima entre estas Recordações e Quem Espera Por Sapatos do Defunto, o primeiro filme de João César Monteiro), não li em parte nenhuma referências à continuidade com o filme de 1975 Que Farei Com Esta Espada? Nosferatu, citado nas duas obras? Não só. Mimi é irmã gémea dessa outra puta do Cais do Sodré que se confessava depois da Butterfly. Filhos dela passa por insulto. Andamos muito esquecidos dos Evangelhos. Estas entraram com certeza à frente dos outros no Reino dos Céus.

João de Deus sai da leitaria. E a discretíssima alusão materna, evidencia-se na banda sonora, quando começamos a ouvir o Stabat Mater de Vivaldi. Houve um corte e João de Deus, filmado em plongée, detém-se no átrio de uma casa setecentista, forrada a azulejos e com um chão lindíssimo. O plano tem a duração e a solenidade para ser sacral. É uma entrada num templo. “Eia, Mater fons amoris / Me sentire vim doloris / Fac ut tecum lugeam” canta-se e ninguém está a jogar com palavras ou com música. João de Deus começa a subir as escadas – grande escadaria de pedra – em plano de conjunto aproximado. A câmara move-se da esquerda para a direita (raccord ao eixo) e dá-nos a ver o patamar. À direita, um anjo com uma tocha e aos pés dele uma mulher velha a esfregar o chão com uma barra de sabão amarelo. Mais ao longe, à esquerda, um reposteiro com as armas de Portugal. Vivaldi continua e todos os sinais estão reunidos para a encenação sacral. Falta nomeá-la. A câmara recua e enquadra João de Deus, em pé, de costas, no alto do lance de escadas, a certa distância da mulher. É então que diz duas vezes: “Mãe, Mãe”.

O diálogo dos dois é cru e seco (da parte do filho). João de Deus foi ali para pedir dinheiro à mãe, todo o dinheiro da mãe, que lho dá. Situação escabrosa, abjeccionismo, etc.? Quem se ficar por isso, não tem olhos, nem coração, nem gosto. Está é a ver a mais bela das Pietá. Quis est homo, qui non fleret?

A mesma sacralidade preside à encenação do encontro de Mimi com João de Deus na boite: a auréola vaneyckyana e nada de coiso. Preside, depois, à via crucis do canil (“Estou consigo” ou ao almoço da cabidela, com aquele final sublime (“mais luz geral se possível”) sobre o grande plano das mãos de Mimi a dizer: “Bastar-me-á, então, enterrar ambas as mãos na teia para sentir que tudo nasce dela”.

Até que chega a noite dos anos de João de Deus. Ele só pensa no clarinete da menina. Mas. quando esta finalmente o toca (salvo seja e é o K.622 de Mozart) desata a chover e todos fogem. Fica sozinha a menina, o clarinete e Mozart. Mas durante toda a “festa”, Mimi seguiu sempre de longe João de Deus. E é pelo sopro de Mozart (como pelos gárgulas jorrantes das fontes) que vamos até ao grande plano de Mimi, já dentro de casa. Um “plano louisebrookiano” (foi João César quem lhe chamou assim). E diz oferecendo-se: “É a minha prenda de anos”. Mozart cede a Schubert. Primeiro o violoncelo, depois o violino, por fim o piano. Ela tira as meias. A câmara enquadra João de Deus contra a parede, sentado na cama do quarto dele. João de Deus pequeno, à esquerda. Sobre a cama, as botas da fotografia de Stroheim. E enquanto continua o Trio, a câmara sobe muito devagar, largando o protagonista para nos dar a ver Stroheim em corpo inteiro, vestido de oficial de cavalaria. Ouvem-se em off suspiros e por fim o silêncio. “O que foi?”, pergunta Mimi em off. E é então que sabemos, pela directa resposta de João de Deus, que Mimi é mãe. De novo, a Mãe de Deus.

Na sequência seguinte já ela morreu. Depois, há a visita ao quarto dela, tão sacral e tão sacrílega como a visita à Madre. A boneca é a figura de substituição que a menina Julieta não pode ser.

Perdidas toda as mães, todas as mulheres, João de Deus assume-se como pária (fabulosa sequência no banco de jardim, com a descrição da morte da Madre de Deus) e depois assume-se como esse Stroheim que contemplara a sua única noite de amor. É Stroheim quem domina uma Lisboa em ruínas, onde o Carmo do Tanhäuser rima com o Chiado esventrado.

E, na corrida circular do manicómio, João de Deus faz o percurso que liga Lívio, (Luís Miguel Cintra) ao realizador, que o dirigira vinte anos antes, nos Sapatos, “Nunca me tinha ocorrido como a eternidade pode ser tão amarga”. “O que tens feito nestes anos todos?”. “Tenho estado por aqui à tua espera”. “À minha espera?”.

O maior dos homens de teatro da geração de 60 e o maior dos homens de cinema da mesma geração, reencontram-se dois, não mais sendo um só. Inventaram o espaço para matar o tempo e inventaram o tempo para dominar o espaço. O bom senso acabou por prevalecer. Deus dar-lhes-á vida. E o plano mais comovente sobre uma geração é esse de Luís Miguel Cintra, vendo João de Deus afastar-se, com um movimento de garganta, como se engolisse em seco.

Vinte anos vivemos na casa dos mortos, ou na casa amarela João César Monteiro/João de Deus ressuscitou dela para contar a todos nós. É uma “comédia lusitana?”. É uma tragédia portuguesa? É um filme de género? Como João de Deus responde a Henrique Viana que lhe pergunta se A Morte de Empédocles (a de Hölderlin, ou a de Straub?) é policial, a réplica exacta é a dele: “Não! É celestial”. Desse género é que é o filme.

Sozinho diante das estrelas, como no final de Silvestre, este é um filme sagrado. É também – uma vez mais – um grande filme romântico. Esgotaram a imaginação a inventar-lhe parentescos. Leiam o Cesário, o do Sentimento de um Ocidental: “A dor humana busca os amplos horizontes / tem marés, de fel, como um sinistro mar”. É possível viajar por estas Recordações com o poema de Cesário como lâmpada de bolso. Quem se desorientar, orienta-se com ele. Para chega ao mesmo verso e à mesma conclusão. O lençol de Dreyer e a sombra de Murnau. Meus filhos, são filmes destes que, pousando, vos trarão a nitidez às vidas. A todas as vidas.

JOÃO BÉNARD DA COSTA

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