segunda-feira, 17 de maio de 2010



“Der Amerikanische Soldat” tem lá dentro pessoas com o nome de Fuller, de Walsh, de Lang…Murnau, etc. existe um bar chamado “Lola Montez (s)”; muitas ambiências de filme negro e outros motivos de reconhecimento. Constatado isto, nada, mesmo nada a ver com qualquer filme que hoje em dia, ou nos últimos largos anos, use de cinéfilia para alguma coisa que não seja feiticismo ou pura inconsequência. Há um lirismo, um sopro de desespero naquele soldado que da América regressa à sua Alemanha para uma estranha missão, que trata as mulheres como lixo, bebe muito, come bem e não hesita em puxar o gatilho. Pressente-se a ressaca de uma certa guerra que terá produzido os seus próprios efeitos, por ventura irreversíveis, e de que nunca se irá falar como se fosse um pecado ou trauma apto a explodir. Um imenso não dito sobre o qual repousam e arrebentam as pulsões e os afectos. Um imenso sentido político a trabalhar em of, em estado latente. Também faz da alienação uma profissão de fé – poderia ser um samurai, mais bruto e porco, mas podia. Toda aquela errância e todo o filme parecem encontrar o seu sentido no extraordinário plano final, que preenche de maneira impossível o abismo sobre o qual a personagem parecia sobreviver e que logo revela a sua impossibilidade. O maneirismo, como sempre em Fassbinder, só lá está para carregar e hiperbolizar o arrebatamento dos sentimentos e da dor. O maneirismo como crispação do gesto.





E é Fassbinder, o mesmo que dizer que a sua natureza – vê-se em todos os filmes, em todo o seu discurso e em toda a sua restante produção – pulveriza qualquer efeito de masturbação ou de piscadela/referência dada de barato, fascinação. Porque a câmara vai sempre directa ao homem, à carne, ao sangue, ao coração. Ao ser, por inteiro, sem a farsa do estilo. Porque a luz existe sempre como acto de violência, isto é, descarnando as superfícies para atingir a negridão e a clareza, a verdade e o que não ousa escancararar-se. Porque os corpos não pretendem a mentira do naturalismo, antes uma força visceral reveladora. Assim mesmo.





O paradoxo é que essa sensação de superfície, de "ser plano", superficialmente fluido é conseguida através de muita mediação, muita máscara, muito papel maché. Porque trabalha-se com o barroco, mas ele não faz com que o barroco sintetize quaisquer preocupações - como com a corrupção (que existe em seus filmes), a decadência irremediável (que existe em seus filmes), ou o romantismo perdido dos séculos que o cinema buscou no seu início mimetizar. Pelo contrário, se a corrupção e a decadência irremediável lá estão jamais irão manifestar-se como as preocupações finais caras à sua arte, mas de mecanismos com funções dramáticas (e até mesmo telúricas) bastante específicas. Ao mesmo tempo em que se tem toda noção do que se está a passar , em termos de narrativa, ainda se tem a atenção quase maneirista (ler crispação novamente) ao detalhe como um meio de mitificar a cena, de catapultá-la na transfiguração do instante pela metáfora ou sugestão.

O cinema de Fassbinder parece-se muito com a experiência de fluxo contínuo, intensivo, sintético que um Wagner queria realizar sob o nome de obra de arte total. Parece-me dos poucos cineastas capazes de conciliar essa luminosidade, essa expressão mais nua da limpidez com a arte barroca e picaresca da prestidigitação, da exacerbação do falso. Uma espécie de demiurgia sem metafísica, sem causalidade ou finalidade que não o próprio selvagem, colorido, mascarado ato criador.

Anti-metafísico, anti-profondeur, escapa às armadilhas do símbolo e encontra na alegoria a situação de um universo mais amplo, rarefeito e mesclado, sujo, um negro de Rimbaud.


José Oliveira
Felipe Medeiros de Morais

1 comentário:

bruno andrade disse...

Tá custando quanto para ver o Film Socialisme? Não sei se vou agüentar muito tempo sem vê-lo.