Evocações espectrais. Gestos épicos e mínimos. Deslumbramentos flamantes e voluptuosos de pura luz e de pura sombra. Rasgos de musical Minelliano, hollywoodiano. Propensão romanesca e aventureira. Correnteza pedagógica enformada pelos sussurros do berço, pelo imaginário dos cromos e do papelão. O que será isto? Marinheiros, cavaleiros e amazonas, masmorras, pedras milenares e partidas de xadrez ao luar, fugitivos, donzelas, capas e espadas, belas e antiquíssimas tradições. Corvos, fundos estrelados, velhos eléctricos de cidade e barqueiros de rio ainda mais velhos, horizontes a perder de vista, mares, Lisboa à noite e desertas vilas pelo dia.
Aves esvoaçantes, folhas e vento. Todo um novo mundo já para lá da memória, verso e reverso do pão-nosso de cada dia a que nos habituámos por muito proclamado cinema e pela televisão que não existe. Fixidez e bailado de câmara – ...aquele travelling para a frente em que do alto do castelo se chega à povoação e à sua envolvência líquida – momento supremo de revelação e logo da poética de José Álvaro Morais.
A crença no cinema como arte da libertação, da perdição e da infinitude, do absoluto, é a crença de “Zéfiro”, talvez o mais belo momento de Morais, porventura o mais genuíno dos cineastas românticos e operáticos que este país já conheçeu, certamente dos mais esquecidos. Aquela doçura e virgindade quando tudo parece estar a ser descoberto ou redescoberto, olhado com a fascinação da primeira vez, campo de todas as possibilidades…
Experiência sensual do presente e do momento, abertura para todos os tempos e lugares, verdadeira e estonteante dialéctica, imagens e sons a existirem com a força da verdade e dos enigmas.
Dádiva sublime e aparição, em meia dúzia de planos, Inês de Medeiros, aliás, Mariana chamada e de encarnado no corpo, como na “Casa da Lava”. È um ser que vêm do outro mundo e que simultaneamente só dali poderia ter saído, do muito longe. Todas as coisas devem ser filmadas com justeza e peculiaridade, mas para as coisas belas deve-se como que inventar novas formas e exceder-se no olhar, no contemplar. Aquele corpo, tão frágil, aquele rosto doce e muito triste, a profundidade magoada e misteriosa do olhar, aquela maneira de se movimentar, acriançada, serena e de uma leveza mais leve do que o ar.
Tudo muda, envelhece, desaparece, mas um dia, por graça de Morais ou de Pedro Costa, vai-se saber que uma criatura assim existiu e pisou o mundo. Uns míseros segundos e a certeza de que o cinema nasceu para filmar coisas assim.
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