segunda-feira, 2 de maio de 2011
Acto de penitência. Falo de Elia Kazan, falo de "Wild River". A primeira vez que o vi não consegui sentir a pulsão e a virulência de um "On the Waterfront" ou de um "East of Eden ". Até irritado fiquei com algo que entendi mais engajado politicamente do que do lado das pulsões afectivas que sempre me fascinou no universo deste para mim tão grande cineasta. Revi-o, descobri outro filme. Abre com trombas de água que tudo levam à frente e reduzem a nada. Fecha em altas temperaturas, num fogo que consome matéria e memória. Igualmente, grande gesto sobre a memória. Descobri a subversão de tudo aquilo, um conto perfeitamente singular. Entre as àguas e o fogo a mais bela e inaudita das histórias de amor, a passagem e consumação de um estado ao outro. Entre as àguas e o fogo, o imenso scope e o technicolor elegiaco, tratado com uma contundência e delicadeza dramática e compositória que não tem muitos paralelos. Mas o modo como Kazan rasga a narrativa em que Montgomery Clift – tão forte e tão frágil como os seus habituais protagonistas ou os de Nicholas Ray – o empregado de uma empresa de àguas que tem que convencer uma velha que dizem senil e teimosa a abandonar a terra para que tudo inundado seja, para o pogresso acontecer, como ela diz, o modo como tudo isso a certa altura é deixado em suspenso e em eco porque o tal empregado se perdeu de amores pela igualmente fragilíssima Lee Remick, correspondendo essa paixão a uma salvação e ao expurgar de demónios interiores e recalcados - mais da parte dela mas também dele - e consequentemente à compreensão e execução dos seus objectivos, é qualquer coisa de muito grande, essas raras alturas. De uma assentada que imagino feliz e dolorosa, Clift vai compreender a velha Jo Van Fleet, entender que se ela deixar de sentir os pés por debaixo daquelas terras, assentar-se naquela varanda ou dali olhar o rio, morre. Vai compreender que é uma questão de dignidade. "Eu compreendo-a, Sra. Garth. Eu sei exactamente pelo quê está a lutar.É pela sua dignidade. Eu sei!". Foi preciso ficar muito bêbado de whiskey e muito bêbado de amores para que tudo fizesse sentido. Jo Van Fleet irá deixar a terra, já não por vontade de Clift mas sim dos mafiosos. Obviamente morre, com a mais alta das dignidades. Voltemos a Clift e a Remick, o mais comovente e lindo par dos filmes de Kazan, olhos e caras e gestos tão tristes e tão perdidos e tão desiludidos, e é porque ele, na fabuosa sequência do cemitério a traz à razão e a faz seguir a vida, a maneira como lhe demonstra que ela só ali resiste porque tem medo do passo em frente e se sente aconchegada - "Não pode deixar uma dificuldade arruinar a sua vida inteira.(...) você precisa levantar-se e ir atrás do que lhe interessa." - que casar com quem não ama é o mais estupido dos erros. Ele que a princípio não se quer comprometer, porque possivelmente esse homem de passado obscuro já se esqueçeu de como se ama uma mulher apesar de romântico chamado, ela que cuida dos filhos como da coisa mais preciosa do mundo se deve cuidar e que tudo o que interessa voltará a reviver. E tudo acontece por aí, ao salvá-la a ela e ao fazê-la regressar à sua casa que pensava estar assombrada, salva também Jo Van Fleet, melhor, faz-la perceber os bons sentimentos e sentir que o par e aqueles trabalhadores que também de lá sairam, recuperaram o brilho nos olhos e reencontraram o sentimento vivível da vida.
Filme outonal, de um lirismo suave, morno, chekhoviano, uma serenidade ameaçada pelo crepúsculo e pelo fim, tudo pictoricamente em sublime comunhão com o fundo, nesses castanhos e amarelos e azuis, nesses nevoeiros que velam os espaços e as gentes e lhes reforçam auras fantasmáticas, retrato franco e humilde e nobre dessa américa do não espectáculo, "Wild River" é um dos pontos máximos do amor às origens e do amor dos homens. Amor como possibilidade de todas as redenções e de todas as mudanças.
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