Lá para a metade de "Band of Angels" dois dos anjos fulcrais do trio que sustentem a fábula humanística e encantada do filme de Raoul Walsh encontram-se divididos e prestes a ser cortados ou cortados mesmo por várias coisas que para não serem inexoráveis fatalidades apenas esperam a manifestação do coração que tudo pode transpor e insuflar de verdade. Coração que gritado tudo volta ao contrário. No ponto limite e na hora da verdade a alma desnuda-se tais como promessas de eternidade de amor que uma mãe em todos os tempos e em todos os lugares faz a um filho.
Entendamo-nos quanta à fábula – violentamente humanista, violentamente encantada.
Clark Gable e Yvonne De Carlo encontram-se aí suspensos sobre o rio que tanto rasga ao meio, sobre um grande barco parado num daqueles portos de tantas lágrimas e despedidas. Ela é a jovem sumptuosa de família rica e nobre que se tornou escrava pelas mais negras voltas e reviravoltas do destino após a morte do seu pai. Ele é um ex-mercenário de terras africanas movido agora por expiações e bondades redentoras. O momento é desesperante e revestido a fogo como nos grandes melodramas clássicos e queimantes onde ambos só sabendo ainda meias verdades mútuas decidem em ímpeto tempestuoso entregar-se nos braços um do outro e franquear caminhos a abismos e tragédias. Começaram a ser românticos…
Ponto alto da arte de Walsh, do cinema, da pintura, dos afectos, do mundo. Da poesia na prosa e da prosa na poesia. Da poesia por ela mesmo. É preciso abrir bem os olhos aquando da referida chegada do barco pelas serenas águas à plantação de Puandeloop para se atentar no que foi o grande segredo e o grande fantasioso da relação dos estúdios, do falso e das luzes, em relação passional e selvagem com a natureza e com o orgânico, para se chegar a uma elevação que possuída e impregnada pelos raios da verdade que ambos os meios soltam, tornou única e primeira vez cada olhar de cada mestre artesão que assim soube ver e modelar. Pode-se evocar a limpidez e frontalidade de David W. Griffith, a inocência de Andrew Wyeth ou os brilhos e composições de Pierre-Auguste Renoir, nostalgias e perdas de Charles Dickens. Sim, como pode ser tudo isso...mas naqueles instantes seculares de irrupção dos cantos dos homens e da sua carne e grandeza em combinada e dependente harmonia com a envolvência terrestre de presente e os ecos de misticismo, emoções das ganas e do sangue e emoções das árvores e dos céus, das nuvens e das águas que pacificadas vibram como vibra um ser que depois de toda a vida encafuado se deixa abrir um dia ao cosmos e à claridade. Podem ser essas mil referências mas sei que ali Walsh cumpre o que certo dia Rilke aconselhou ao jovem poeta que lhe pedia conselhos: "Tente então dizer, como o primeiro homem, o que vê e o que vive e ama e perde".
Raríssimas vezes o cinema atingiu esta pureza não contaminada por referências óbvias, decorativismos ou normas. Também longe de qualquer tipo de cristalização ou de ponto de chegada de uma arte ou de um modo de fazer. Walsh, verdadeiro homem no tempo em que ainda se filmavam homens à altura devida, inconsciente poeta trabalhador de aflorada sensibilidade, coloca a sua câmara humildemente disponível para colher e olhar as coisas e os elementos como se eles ali se revelassem e nascessem pela primeira vez, assim mesmo dizendo presente em tais eventos, nesses momentos precisos e preciosos, para depois explodirem na tela em cósmica comunhão entre os materiais e as formas do trabalho de um cineasta e a presença arrebatadora e logo aterradora do indomável do mundo, a uma respiração e a um ritmo que depois de todas as coisas e alturas a que a história do cinema naquela data já tinha alcançado, ali a transcende num renascimento sem nome possível. O susto e o milagre.
Anjos de asas queimadas...anjos trucidados em vulcões e dialécticas e rebatimentos interiores...anjos paralisados na terrível teia do passado e da memória...anjos agonizados mas anjos ainda com o dom de poderem amar …anjos que se se convencem que não vale a pena fugir de si mesmos, logo acrescentam: "mas pode-se tentar". "A história leva o seu tempo" diz Gable lá para o fim, e como sempre o reverso dessa moeda ou dessa cada vez mais utópica crença são as demagogias e os arrivismos dos poderosos e dos prepotentes. Ontem, hoje.
Conto humanístico que não piegas, sobretudo isto. Aos referidos seres em volúpia torturada torna-se indissociável aquele corpo terno e elegante mas acometido de vingança que é Sidney Poitier. Negro supostamente integrado e agradecido ao mundo dos brancos é a figura e o eixo de ambiguidade e de reversibilidade que assombra e assola a obra e assim mesmo a condição do mundo e do homem dos inícios até hoje. Jogos de mascarilhas e interesses estes nesta terra onde cada um se movimenta e põe a cara como lhe dá jeito a cada instante. Mas como Renoir cineasta, Walsh sabe que todos tem as suas razões e amarguras mas que sobre certa luz e no momento ajustado – aquele onde os corações vão directos à boca e às dadivas sem subterfúgios – tudo é passível e certo de compreensão e entrega, suavidade e carinho. Neste mundo de interesses e de ódios para lá do compreensível e do aceitável, estes são os anjos que por inocência – Yvonne De Carlo – por tradições ou fraquezas – Poitier – ou por um passado que se detesta e que se acredita apagado – Gable – abarcaram um infinito sofrimento e uma mágoa que lhes volve o olhar magoado e langoroso. Mas, lá no fundo, reconhecem e aceitam a protecção da paixão. A salvação e o privilégio dos grandes.
Trio, obviamente. Mas que não se descura outro membro ou artéria vital deste corpo que mais do que a história da América em convulso e decisivo momento se torna obviamente a história de todos nós, de todos os tempos e lugares, tragédia e ode. Ela é Carolle Drake, dona de casa, ou porventura algo mais, das terras de Gable que se adivinha presença antiga e tão passível de redenções por parte dele como Poitier. Pode ser símbolo e obliteração da maldade apagada que devasta Gable mas é sobretudo um dos elos mais complexos da história, tão humano é o despojamento e a entrega dela ao bem estar e felicidade do patrão, franqueando caminhos à paixão e sendo a sua discretíssima protectora e seu anjo de guarda. Belíssima presença e central presença – qual divindade descida à terra como Capra – que Walsh trata de retribuir com todas as dádivas possíveis da beleza da fotogenia da película.
Dos planos ou quadros infantis iniciais – outra vez as pinceladas cândidas de uma nostalgia feita berço adormecido de todas as possibilidades e regressos às felicidades uterinas – ao planos finais de entrega às águas e claro à perdição que é o amor, uma via sacra de ressonâncias e percursos bíblicos em que toda a dor que ataca de todos os modos – e até contra vontade – bem como a maldade inerente e fundadora se torna coroa de espinhos rumo a um arco íris possível vislumbrado e escondido entre o "the end" e a casa para onde dificilmente se volta com que Walsh nos deixa ficar no instante último.
E para ver, rever, jamais esquecer, o primitivismo envolto por todas as invenções e pasmosos assombros:
- As sussurradas e brutais elipses que cosem o corpus fílmico e o tempo em direcção ao essencial, ao harmónico, à secura de tom, mas também à morte e predestinação. A morte a ressoar pelos interstícios dos espaços vazios e ocultados. O que tem de ser a ser mesmo. Veja-se: o crescimento de De Carlo, a morte do pai e as consequências, as crenças traídas pela Imagem e pela História (o emaranhado em que se deixa meter o namorado dos tempos de idealismos e carolices).
- Poitier e o seu momento musical e amargo cantado ao vento e à chuva que tudo leva, em que toda a possível magia do estúdio é tanto quebrada pelo vendaval como pelas tripas e entranhas e graça desse tão desprotegido ser que aí, na sumptuosidade à beira do delírio, rouba para si qualquer primeiro ou grande plano.
- Ainda em matéria de dilúvios, as janelas vilipendiadas correspondentes às da Taberna de John Ford e logo desmedidos e ultra eróticos beijos tão, tão retardados.
- Os Campos / contra campos do par à mesa, logo após a compra decisiva de Gable. Do excelso quadro geral de lascivo dramatismo cromático até às velas que os enquadram nos planos fechados, em que expressões, sentimentos, gestos, não ditos e decotes tanta coisa prenunciam e tanta coisa aproximam – na suposta oposição dos passados e da moral, uma necessidade e compreensão mútua urgente, os indícios a que todas as quimeras aspiraram.
- A indizível beleza e a indizível massa e sensualidade luzente e musical do transporte do par em caravanas de rosas até aos seus aposentos.
- Tudo, absolutamente tudo, o resto. Do coro de vozes e corpos em fresco intimista e universal até ao inigualável trabalho sobre as zonas de claridade e as zonas de luz, essa relação de onde o cinema brota. Tudo.