"O cinema é a infância, não a adolescência" afirmou certo dia sucintamente Serge Daney o que toda a vida passou a escrever secretamente. No últimos tempos parece que vários realizadores o tem tentado e não dos menos respeitáveis. Tempo então para ir a Vicente Minnelli, esse cineasta de tantas primeiras vezes e de infindáveis redescobertas, tempo para "The Courtship of Eddie's Father " de 1963, por favor. Urdido a cores perfeitamente Minnellianas começa o recito proposto, quadro largo como também habitual, um mundo filmado de cima que nos sussurra e nos faz ver esmagados que aqueles seres são apenas mais uns no imenso universo conhecido, descontando os escombros e as zonas negras do saber possivelmente tão ou mais imensas. Entrámos numa casa, encontrámo-nos com um homem, uma criança, que são um pai e um filho. Um luto abafado vela o ambiente, silente, no devir da explosão. Falta a mãe, claro, e não houve até aí tempo para digerir tal facto. Os acontecimentos, a mente e os ecoares que fulminam a carne, o estômago e fazem pesar a cabeça de indescritível abalo são como um organismo que precisa de digerir o que absorve, os excessos, o estranho, os azedumes, etc. É necessário o tempo certo. Daí aquele momento de puro terror, em que logo depois da criança dizer ao pai que na escola não consegui fazer o que mais queria, ou seja, chorar, um dos seus muitos peixes morre e o seu íntimo e lógica entram em atrofio. Um horrendo jogo de estilhaçados espelhos em que a tragédia e os abismos atacam cada ínfimo ponto de matéria e sugam a alma (e é preciso que se veja que a câmara mágica do cineasta, citando João Bénard da Costa: "Só a Minnelli Deus deu o condão que deu às varinhas mágicas das fadas", se torna aí, nesse plano, assustadoramente glacial, clínica e crua, de desbotadas cores, com a lente juntíssima à face do miúdo, analisando cada poro e cada exalação, num plano que só não de absoluta ruptura pois Minnelli permanece um medidor de temperaturas). Fica-se seco nem saliva se tem os ossos estalam.
Enfim, o que Minnelli sabe e o torna grande em relação ao seu íntegro direito de penetrar nos assombrados, perdidos e sensíveis reinos da infância é no fundo o mesmo que homens tão ou não diferentes como Fritz Lang, Roberto Rossellini ou Jean Eustache singularmente atingiram. Jamais se impor uma visão feita ou corrompida ou determinista de normas e afectos lamechas e logo esperados e assim falsos, antes essa tensão dialéctica entre o olhar límpido, translúcido, puro e não viciado da criança que se cruza com o do adulto e este reencontra e reconhece o que já passou mas sempre pode voltar. Entre a curta longitude do nascimento e a contagem decrescente à morte nunca se está certo da extremidade em que se está, fatalidade. Essa relação de dependências e de correspondências entre primitivas dúvidas e intemporais dúvidas. Uma compreensão mútua, inteira, sem idade ou nome pronunciado. O espaço que Minnelli deixa nas entrelinhas é tanto o espaço de todos os segredos dos seres e do que é existir, como a constatação da perenidade dos sentimentos iniciáticos e o constaste regresso a esse paraíso perdido. Não é o pai que faz a papinha toda a Eddie e lhe dá lições e o põe na linha e lhe ensina tudo. Nada disso, é preciso saber muito de vida tanto como de formas de cinema, é preciso ter andado muito, tropeçado muito, ter ido às entranhas, para pôr em cena um Eddie que descobre como fazer a sua catarse à custa de muito dar com a cabeça e se entregar à vida, um Eddie que decide falar em vez de meter para dentro até possíveis eclosões, devolver o pai à vida tanto como este o soube ver e o soube tratar como um homem e não um boneco. A vida consiste em absorver tudo absolutamente tudo bom e mau e assim ser fascinante. O bilhete de identidade passa então a nada valer e os estados a confundirem-se; ambos se comportam do mesmo modo em lojas de brinquedos e é o pai que tem várias noivas à escolha e o filho que jura ser fiel a uma e só uma; o pai que como uma criança no final telefona à vizinha do lado para marcar um encontro ao invés de atravessar o corredor. O tempo do filme é talvez não o tempo do pai esquecer a mulher que perdeu e arranjar outra, antes o apaziguamento da circunstância e o estar pronto para o que der e vier por parte do seu filho, sem desculpas. Mas nunca nunca jamais se cai no engraçadinho ou na piada tão em voga nestes tempos, tudo é vivido, tudo deriva de pacificadas e convulsas relações e não de estúpidas escritas à guiza de efeito.
Do lado de Sam Fuller, que como diz uma das mulheres do pai a certa altura – a idade favorece o esquecimento, mas também do lado de Nicholas Ray ou Elia Kazan, que tanto nos mostraram que a tortura da juventude manchará irremediavelmente o pano das futuras vestes. O que só demonstra complexidade e infindáveis perguntas sem as respostas certas dos demagogos e dos pueris que tudo sabem e assim não vivem são fantoches.
Enigmas resguardados e não postos em excitação na tela como hoje tanto. E reparem como a câmara de Minnelli, como a de Cimino nos grandes espaços mitológicos, não separa homens de fundos, almas da natureza, nem orgânico do inorgânico, porque tudo é animado e ferve como imagino ferva o que sempre está debaixo dos nossos pés e nos afecta. No fundo bem lá no fundo.
Questão de distâncias e questão de coração. Brutalmente como para na vida seguir em frente.
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