No cinema como na vida existem os consensos
imediatos, dos quais com a experiência tenho vindo a desconfiar de tais coros e
globais adesões. E depois os objectos, as acções, as práticas absolutamente
desprotegidas, nuas, sinceras. Por outras palavras: os falsos aconchegos que
nos passam as mãos pelas costas e nos dizem que a vida e os sonhos e a fama são
possíveis se lutarmos como lutam as lindas marionetas das telenovelas do
horário nobre. E, contra toda esta areia toldante, algo que de quando em vez
nos abre feridas profundas em vez de temporariamente as cicatrizar; verdades
superiores como murros no estômago que nos escancaram a mente, o cérebro e os
olhos para toda a lixeira de uma certa sociedade, de uma certa civilização, de
uma certa mentira larga. Se quisermos e porque por aqui já se sabe do que
costumo falar, é a discrepância entre o sensacionalismo televisivo ou
jornalístico e logo comunicador, e a arte verdadeiramente arte, o cinema
verdadeiramente cinema, que, antes de tudo, é questão de formas como princípio
de mundo, questão de formas que medeiam qualquer sentimento e o possibilitam de
todas as explosões possíveis. Lutas e distâncias entre imagens-sons-respiração-morte.
Se vier então agora pronunciar-me acerca de
Vincent Gallo, dizer que esse músico, manequim, pintor, provocador
profissional, etc., é também um dos cineastas contemporâneos que mais me
interessa, e que fez talvez aquele filme que este milénio mais me tem obcecado
e perseguido e espantado, espero não acometer de provocação contra nada – caso
contrário a estupidez em vez de diminuir desde os felizmente longínquos 2003,
ainda aumentou. Passou-se então quase uma década sobre uma tal estreia e um tal
choque no festival de Cannes, tempo que julgo necessário para os bons olhos
estarem limpos, os anedotários terem findado e os arremessos pessoais se
denunciarem no seu ridículo reacionarismo.
“The Brown Bunny” começa logo por demarcar-se de
qualquer corrente estética e visão do mundo que os anos dois mil nos trouxeram,
correntes e visões essas que foram boas e más, ou seja, nada a ver com os
tempos distendidos de “instalação” e consequentes estranhamentos exóticos de
ultra novidades como Apichatpong Weerasethakul ou Raya Martin. Evidentemente
longe do Kitsch admirativo de “nouvelle vague´s” ou liberdades à João César
Monteiro, tais como Christophe Honoré ou João Nicolau. Tão oposto ao feito moderno e à fórmula dos últimos Bennings como aos
narcisismos frigidos de um Boris Lehman. Quanto às “performances” tipo Peter
Greenaway ou Hugo Vieira da Silva, mesmo os Warhol´s
wanna be, sem mais conversas.
Grupos, modas, tendências, coutadas – Gallo demite-se
de todas essas t-shirts.
O gesto e a construção de Gallo é a todo o
momento raro e inaudito, mas se se pode dizer que no percurso traçado não se
está atado a qualquer credo ou linguagem, que cada plano vale por si como peça
autónoma, não há como não admitir que tudo ali é também perfeitamente clássico,
de campo a contra campo. A um tempo sem raccords que não sejam os mentais e
funcionando como um corpo e récito dorido, magoado, tantas vezes imerso numa
corrosiva patologia que tanto parece advir do ar daquele tempo como de
imortalidades.
A cena Inicial. Longos, silenciosos e austeros
planos sobre uma pista de motos em competição. Longos mas de uma justeza de
duração que se sente pelas permeabilidades várias aos sons do mundo e aos sons
nascentes de uma sensibilidade actuante e interior; uma tateabilidade imagética
extremamente delicada que parece desvanecer-se na sua abstração e ao mesmo
tempo uma fisicalidade palpável, suada e urgente. E as distâncias e motes estéticos
ficam logo aí lançados, cinco minutos depois já Gallo guardou a moto na sua
negra carrinha, se pôs à estrada e contou à primeira das suas várias tentações
que perdeu a corrida, o que parece já ser habitual, sina daqueles olhos
imensamente tristes, imensamente perdidos.
Gesto de tábua rasa e um outono de Sam Peckinpah,
como os homens dele pelas vias alternativas e sombrias das existências à
sociedade ilícitas e suicidárias caminhavam. Se por um lado parece não se
passar grande coisa, e isso é belo, nessa démarche ou via-sacra - jamais
perscrutaremos certezas feitas no território do rosto de Vincent - estando esta
expressão do mundo que passa próxima da influência confessada das telas
minimalistas e perto do etéreo de Robert Ryman, ou, e aqui já leio eu, na
difusão nostálgica e solitária das ambiências e vivências de J. D. Salinger,
isto é, algo profundamente americano, algo profundamente universal. Micro
movimentos, micro sensações, micro percepções que se podem volver a dado
instante convulsões lácteas que a câmara detecta ao virar de uma curva.
Por outro, continuo, passa-se imensa coisa,
imensa, desde o perdedor que atravessa essa américa com as suas paisagens
desencantadas e sem grandes ilusões ilusórias; esses regressos à infância
feitos de coelhos verdadeiros e de chocolate; engates envergonhados e mulheres
em cada abrigo; arrependimentos e garrafas vermelhas de Coca-Cola; reencontros
de vizinhança; e como é possível não ser grande coisa uma ida de moto por um
deserto de sal até ao fim do mundo?; beijar
e ser beijado em fogosas ousadias; (deem-me aquela troca de olhares entre ele e
uma das loiras num apeadeiro de caminho e não vos peço, Deuses ou loosers, mais
cinema); flashbacks bucólicos e de fugazes porque horríficos lirismos; escritas
de cartinhas a belas e colocadas nas suas portas; confrontos com a traição da
única mulher que se amou; confrontos com a morte de um filho; tristezas sem
nome; sexo oral em jeito de requiem ou de inelutável luto…
…Ou então Vincent decide continuar na estrada onde o
Kowalski de “Vanishing Point” ou o John Wintergreen de “Electra Glide in Blue”
se decidiram apagar…ou então apaga-se quando o filme apaga a luz e esse
ondulante movimento fecha…aqui, sem certezas.
E depois…interessa o ar que lhe cai na cabeça.
Que lhe entra ouvidos, nariz, boca, olhos adentro e lhe fulmina de oxigénio que
é vida. Uma claridade ou escuros reveladores. Tempo a passar e a destruir na
pele e nas veias. O corpo e a cabeça que tremem e estalam sobre vidraças
embaciadas. Só quem muito andou e muito penou e se perdeu e deixou perder e
talvez se achou pode saber do que se fala por aqui. As lágrimas secam-se-lhe no
rosto e segue em frente.
Da pura efemeridade e provisório dos longos quadros
da janela suja da carrinha e logo do olhar de Vincent, até à mais selvática
explosão contida no broche de Chloë Sevigny, constantes invenções formais no
pequeno, no íntimo, no amadorismo, o que vai provocar detonações vermelhas na
pelicula, granulações vivas de quem expõe luz como quem respira, raios que
inflectem pela objetiva e olhar adentro quais trovões. Invenções que nada tem
de inventivo no sentido desdenhoso de “criatividade”, antes fisionomia e
expressão exterior e plasmada da alma. Quadro, enquadramentos, composições ou
ajustamentos que adquirem a fracção, o parcial, o subjectivo, a mutação a todo
o instante e assim se demitem de quais queres ambições totalitárias, de
abarcamento global – funciona neste como noutros aspectos a predisposição do
viandante da tela e do viandante que frui à frente dela. Calmos e subtis encadeados
utilizados sem pudor pois essenciais à constante metamorfose e união de todas
as paisagens sentimentais umas nas outras. Sincera exposição, sinceros arcaísmos
do arco-da-velha. Tudo, mas tudo, de mão dada com a dor.
Ao zero de decorativismo e ao aceitar das
agruras orgânicas e vivificantes possíveis a qualquer um e não apenas ao
“grande artista” e à “grande arte”, o que me interessa e me pasma acima de
todas as coisas é a invenção do tempo, de um tempo. Do referido plano inicial
da pista até à estrada sem talvez rumo com que o filme funde a negro e se
espeta nos abismos que franqueou. Um tempo que é o de uma mágoa indizível, e
que abre para outros tempos paralelos, inacessíveis e incomensuráveis. Um tempo
também de puro andamento e contemplação. Correspondências, reconhecimentos e
redescobertas ao meio primevo. Um tempo de Vincent Gallo e para Vincent Gallo;
um tempo para quem quiser, tocado pela emancipação de qualquer impingimento ou
amarra fílmica ou moral. “The Brown Bunny” tem o ritmo de um cortejo fúnebre,
de um lamento arrastado ou de uma cura necessária, embalado por toda essa
imobilidade andante, por todas essas baladas de recomeços e epílogos. Salta-se quando se quiser, parado ou em andamento,
assim mesmo.
Não conheço nada tão antigo; não conheço nada
tão actual. E o mundo continua a girar impassível sobre os seus imperiais eixos…
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