quarta-feira, 26 de dezembro de 2012


Lixado filme como lixado sentimos HB quando olha para o seu retrato de imprensa que ele e nós sabemos que nada tem a ver. Cabeça a prémio, fungarada de tropeções. Todo o noir a estilhaçar-se no embate com a mal educada imprevisível da vida. A pena do contrato de trabalho iludida. Alguma coisa está suja, menos ele. Porventura.

Muito ambíguo o modo como Delmer Daves arquitectou cinematograficamente “Dark Passage” através da novela de Goodis. Ainda hoje, ou sobretudo hoje, muito irónico e inusitado. A visão subjectiva de Bogart que giza a mise en scène desde a abertura até à operação de falsificação de rosto nunca é mera jogada estilística, antes vai em direcção ao fundamental da empreitada, vigorosamente, o voraz apetite sexual de uma Bacall que morre por o encontrar, esconder, possuir. Só para ela se possível. Desde que o caça nas montanhas curvilíneas de San Quentin o seu olhar mantem-se felino, espicaçado, esfaimado, como a sua tez húmida, os movimentos calculados e trôpegos e vulcanicamente prestes a jorrar, a boca lânguida com a voz afectada. Muita fome que o ponto de vista directo do protagonista amplia vertiginosamente.

Bogart vai às pinças e o seu rosto mumifica-se, quem o olha do lado de cá ainda só lhe adivinha os traços. Quem por lá o reencontra noutras formas deve-lhe sentir o cheiro e mais do que isso. A voz calou-se. O primeiro plano de Baccal quando assim o acha é um Olá em grande plano esfumado à loucura e à perdição e ela enfia-lhe cigarros na boca, palhinhas de chá, fecha-o no quarto, enlaça-o, vai-lhe à pele, roça-se. Rosto atado, um todo dependente, desejos incendiados. Expulsa a concorrência feminina, também a masculina. Liberta-o às feras com ela fisgada, a plenitude final confirma-o. Toda uma via láctea imperdível na elipse para lá da fita.

De resto, e que resto de pedaços atmosféricos, fumaceiras e pancadas do imprevisível do ilógico e do irracional para assim mesmo tudo se tornar perfeitamente reconhecível, é o rodopiar da mortandade que só o imerge numa curiosidade alheia e atiça apetites e cobiças em curtos ásperos rastilhos. Cada um que lhe vem defronte vidra. Mais resto ainda, corpos que caem fatalmente de cimos e empurrões para abismos impensados que são quase ou são frustrações. O plano gigante insolente e olhos arregalados da gata em cio que é a personagem de Madge quando HB de corpo inteiro lhe toca à porta. O atordoamento metade vigília, metade sonho, metade estupefaciente, metade visco, erótico, óbito, num lento despertar para um fora de tudo aquilo. Atordoamento do meio, carne, psique.

Acabam os dois predestinados a bailar à beira mar, palavras dispensadas e corpo um no outro. Entreolhares de finalmente. O homem sem rosto da fantasia e a mulher de garras afiadas completa. Saciem-se, por amor de Deus. O grande Daves humanista de “Jubal” ou de “Broken Arrow” chega a uma mascarada e a uma escuridão que todos os nexos mete em causa, num deslizar de códigos ou de sinais que se libertam em torrentes orgásticas e demências inomináveis que é tudo o que o cinema sempre buscou. De todos os lados e pela mesma causa.

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