quarta-feira, 13 de março de 2013


“Merrill's Marauders” é um filme centrado, localizado, a um espaço e a uma respiração, um enquadramento e um ecrã, assim mesmo, de corpo presente. “Corpos em trabalho, à beira da síncope”, na resumidora e incontestável sentença de Louis Skorecki. Nada a ver com o épico ou, para agora convocar Jean-Claude Biette e outra expressão definitiva para um certo meio de luxo e ambição, “cinema filmado”, glorificador, topo de gama. O que acontece então neste pedaço intemporal de superação, logo ecos para eternidades? Os soldados do estoico general Merril têm que ir atravessando a Birmânia e impedir que os Japoneses alcancem os Alemães, isto na segunda guerra mundial, para se travar o previsível colapso de uma humanidade.

E depois daquela actualidade que surge por cima do primeiro plano do campo de acção, onde a área e a temperatura nos são dadas de um ápice, precisamente centrada sobre estas, vamos descer à terra e fixarmo-nos num drama caseiro, intimo, só. Quando somos postos ao lado dos Marauders já eles caminharam muito, viram muito, mataram muito, morreram muito. Já Merril lhes mentiu e lhes vai mentir mais, amou-os, acreditou neles, acreditou no homem. Exaltou, lixou-se.

A lógica da acção é dura, seca, irracional e absolutamente acabada. “Enquanto eles podem respirar, podem lutar”, assim o general acaba com as dúvidas e dá o mote. O mesmo que dizer que a carne aguenta tudo, tudo até os olhos se fecharem para sempre. Nada de metafisicas, Samuel Fuller é tão lacónico que só pode encontrar do outro lado o lirismo extremo que acaba sempre por vir ao de cima. Um paraquedas que de facto cobre romanticamente o soldado morto mas que esvoaçando ao vento lhe serve de casual última morada, sem enlevos.

Aquele exército de vivos-mortos, almas penadas insurrectas, já de par com a treva, vista limpa, só vai continuar a caminhar e a disparar, “um passo após o outro”, danados de fome, sede, brisa, porque quem lhes grita e agita de loucura anda sempre à frente deles, segura-lhes a mochila, cede-lhes guarda no abismo, oferece-lhes o último cigarro e o último fósforo, põe-nos de pé, abre o peito às balas, cospe sangue e fogo, estoura o coração, morre por eles.

Que não é herói, nem ali os há, cada um cai mais calado e anónimo que o seguinte, e a câmara de Fuller na mesma procissão, antes a assunção por inteiro de uma consciência ampla e superior que lhe permite arder até à última combustão possível. Coisa próxima ou já no terreno do incompreensível. Se um corpo aguenta o que aguenta é porque certo tempo em certo lugar assim terá de ser. Por eles chamaram. É a grandeza de Merril e de cada um dos seus Marauders. Mas tão, tão daqui, que nem os Deuses se pode convocar.

Antes os eternos e pesarosos momentos seguintes ao massacre no betão, em que o sangue, massas e tripas derramadas, não fazem ainda corpo com a terra, antes se encontram do lado de fora de urnas, campas, caixões. Naquele cemitério tão desiludido, triste como as corujas que lá devem chegar, onde os defuntos nem enterrados podem ser, paira um estado de desacreditação total que é o passo para os excessos seguintes. Cena fulcral, dali para a frente os mortos caminham. Por isso a cena é varrida ou rezada como que numa missa, sequência de dor onde os olhos não se podem fechar pela constatação. Assim podemos ser, assim somos.

Aquele homem de cabelos grisalhos, rosto cerrado, crispado, quase estátua, ferido mas cheio de fé, esse homem é eles e eles são ele. Nada de moral falsa, tudo transparente e brutal, unificada órbita, como na cena capital e infinitamente ressoante. Eles levantam-se e caminham de leitos de morte e “Merrill's Marauders” transporta nesse peso o peso da verdade, o movimento verdadeiro, a questão do cinema. Palco total.

Agora, agora comparem-me lá o que podem estas vontades e a maneira como ali não há artistas nem egos, nem de fora nem de dentro, Fuller é de outra rocha, sempre engoliu pólvora pela goela a baixo, em cada campo, médio oriente ou Bronx, oposto completo da choraminguice e das sopas ultra contemporâneas que a todos satisfazem barrigas e olhos que já não o sabem ser. Acomodado degredo. E comparem lá o burro deste filme, não com o seu parente do filme do Bresson, mas com o crocodilozinho a preto e branco que por aí anda na ribalta.

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