“O pouco dinheiro de que dispunha destinava-se
quase exclusivamente ao tabaco e ao álcool, com vantagem para a bebida. A sua
preferência não se devia à necessidade de afogar qualquer preocupação ou fase
de desânimo, estados de espírito que raramente conhecia, pelo menos em
consciência. Fazia-o apenas porque, enquanto emborcava as bebidas, não se
achava inactivo. Encontrava-se desempregado e nada mais tinha para fazer.”
David Goodis, “Brigada Nocturna”
O vagabundo surrado da esquina pode de um tempo
para o outro ser príncipe, tal como o burguês de merda do mais chique dos
pátios acometer do mais nobre gesto. Um humilde e raro metamorfosear-se num
acossado bicho vingativo ou o cabrão mais egocêntrico encher de amor o mais
oposto dos corações. Um que tinha dinheiro a rodos até já a vênia me fez
enquanto que um zé ninguém como eu me virou a cara à bocado. Faz oito anos vi
duas vezes de seguida o mesmo filme, considerei-o obra-prima, outro dia voltei
a ele, no tédio, e desliguei-o antes da palavra fim. Escrevendo isto já quase
me perco e de lógicas sei cada vez menos. Tanta ficção, tanta vida, tanta terra,
tanto fumo.
Já por aqui falei de uma tocante personagem da
minha infância, que em retrospectiva a minha adolescência já não reconhece,
embora mais do que a imagem me sobre e me arrepie a experiência. Ficou, e constactar
e lembrar será para sempre confirmação da bondade e da humanidade no mais
imprevisto dos redutos. Abundância e brilho e fulgor no corpo para tantos
viciado. Era pela altura do Natal que o Carlos Alemão aparecia na casa da minha
Tia Laide, a fim de colmatar falhas que os seus parentes de religião alheia à
quadra lhe espetavam, e não somente na seia de vinte e quatro mas igualmente
nos preparativos anteriores e consequentes dias seguintes de ressaca. Entre a
sua casa e a da minha Tia distavam exíguos cinquenta metros, que eram
encurtados ou estendidos pela tasca da Buraca, pelo que se os pais lhe aquecessem
os nervos ou o arrefecessem à rua, era certo que se houvesse cem escudos num
dos bolsos, ou se o fiado ou os comparsas vigorassem, ele chegaria aos festejos
fervente e espalharia magia. E tais idas e vindas dariam para um novelo
Proustiano que não ouso entrar. Fico-me pelos diversos serões antes das prendas
que a minha família proporcionava depois do bacalhau e das batatas com o melhor
azeite caseiro de que me recordo, tempo em que se eu tivesse sorte já podia
molhar os lábios com o verde tinto praticamente espumante que o meu Tio Abelino
tinha colhido no outono transacto. Havia algumas prendas mas rezava-se antes da
comezaina, era sagrado. Depois das dez, horas da cerimoniosa lerpa, aquele
fulminante jogo de cartas a dinheiro em que a vitória e os câmbios largos
namoram com a bancarrota e o nada. O Carlos Alemão, já e sempre no seu blusão
de couro gasto muito germânico e com o seu bigode genuinamente curtido,
cozinhava uma de caixão à cova, uma que envergonhava qualquer um dos meus tios
ou primos, e Deus sabe como a minha família aprecia o divino sumo de uva…não
havia competição possível no teor alcoólico, todos os outros eram mansos
acólitos em comparação e, num momento fantástico e perto do celestial que o meu
posto de eterno espectador me proporcionou, o sublime Carlos amealhava uma para
ele inaudita pipa de massa, copos e copos prometidos, centenas de SGs gigantes.
Quase juro que se a telefonia estivesse ligada, mesmo sendo fins dos oitenta
inícios dos noventa, não eram os Nirvana mas sim um Paulo Alexandre que
franqueava os calafrios. Já não me lembro o que subitamente aconteceu, mas
lembro-me e só vou esquecer isto depois que a fatal gadanha me calar, um
sorriso se rasgou também inauditamente, uns olhos arregalaram, uma boca abreu,
de lá de dentro saíram estas palavras, mais ou menos assim: “ó Miguel, agora
vou ter que me ir embora, já estou cheio disto, podes jogar no meu lugar, até
logo”. Palavras da minha vida… O Carlos desapareceu mais lesto do que as
sombras e brisas da noite em tempos de maldição podem ser lestas, um cigarro de
certeza que a iluminou, e eu fiquei com mais de dois contos de rei para gerir. Honrei
a coisa e empenhei-me, sei que já de madrugada e em minha casa acariciei papel
verde, avermelhado e metal prateado. É das primeiras memórias que tenho de algo
maior do que o comum e que de certeza perto dos Deuses, Anjos ou Guerreiros de
que por aí ia ouvindo falar. Um muito
moderno arcaísmo. Não daquele mundo.
Anthony Mann realizou, como Ford ou Hawks ou
Dwan, os mais belos e límpidos Westerns do cinema cinema. Também, como eles, de
um desassombro e lucidez sem par. O que merecia aparecer aparecia,
manifestava-se, extravasava, assim como as convicções de ferro davam sentido à
palavra justiça. Portanto, em planuras secas ou linhas de comboio perdidas, a
cavalo ou no trânsito dos infernos, na aridez ou na Nova Iorque dos anos
cinquenta, cowboys ou gangsters, a moral e a construção dramática de Mann
jamais entrava em perda ou se deixava corromper, filme a filme.
“Side Street” é de 1950, dois anos depois do par
Farley Granger/Cathy O'Donnell se esconder nos filhos da noite de Nicholas Ray,
funcionando este regresso da orbe dos mortos como um fascinante e ambíguo
lado-b do filme de Ray. Muito de rompante e sem aviso entrámos neste universo
contagioso, peganhoso e disperso, em picados vertiginosos e verdadeiramente
pontiagudos, não limados e de uma sujidade aflorada. Cruzamento entre a febre
de Sam Fuller e a condenação do Jules Dassin de “The Naked City”. Uma veemente voz-off,
que pode ser a de um agente da lei ou a de qualquer um de nós, vomita-nos
verdades esconsas e escondidas. Pura dialéctica e carga de porrada. “Uma selva arquitectónica
onde a riqueza mais fabulosa e a mais profunda miséria vivem lado a lado.” “Nova
Iorque, a mais movimentada, solitária, mais amável e mais cruel das cidades.” Estatísticas
e factos, incertezas e promessas. Perguntas. Um ou outro lamento dissimulado.
Pose dura. "Nova Iorque é todas as coisas e todos os lugares reunidos numa
comunidade." "Esta cidade, como qualquer outra, é a soma de seu povo.
Com as suas fragilidades, esperanças, medos, sonhos." "Estes, são
eles tragédia ou comédia?"
Granger é um carteiro que vive na casa dos
sogros, espera o filho da linda Cathy, um mais do que íntegro e inocente, por
isso mesmo pronto a provar do eterno veneno que é o irracional, esse animal
calado que vive no fundo de qualquer um de qualquer parte. Olha para umas notas
no chão por acaso caídas e põe-se a sonhar com luxos para a sua amada, ainda não
acordou e a sua mão já está a ser travada por quem de direito. Escapou, mas o
destino ou lá quem sabe-a toda e vai facilitar-lhe as pulsões que entre mais
coisas calam de certeza a lábia dos mais velhos acomodados da casa onde habita.
A narrativa espraia-se de forma elementar e singular, porque pode acontecer a
todos mas o suor é só desse muito assustado e muito novo na terra Joe Norson. Cai,
rouba, promete, mente, carcome-se de arrependimento, embrulha-se nas teias do
mal, vê cadáveres e vê santos, tem sorte e azar. Afunda-se cada vez mais e lá
de baixo bate-lhe o clarão redentor. Levanta-se. Nunca mais vai tombar numa
assim ou então na próxima é de vez.
“Side Street” é a colocação em cena, com as suas
diversas camadas de luzes e de corpos em rodopio e luta eterna sobre a
totalidade do palco-universo, da loucura e da perdição fugaz, próxima,
inescapável. Aquela ali que nos vigia. Rampa à danação. E esta cidade é todo o
mundo, todos os universos, todas as vias lácteas, todas as matérias e
espíritos. Julgamentos, leis, cânones, anarquias, sagrados. Em ebulição.
O senhor lá dos altos cala-se e só voltaremos a
ouvir o off no término, depois de uma verdadeira caminhada cicatrizante ou reveladora
que Robert Bresson ou Roberto Rossellini gostariam de ver e de escutar. Da
violência latente e feroz do começo passámos para os ferimentos e para os
silêncios, males da terra e do homem, fogos comuns. Se Mann entrou a matar, a
câmara como um martelo, logo se vai fechar com um tipo e as suas insónias e
tremores. E achar uma silenciosa poesia rescendente que é o eco e o trabalho da
constituição e do berço original de Norson. Rumor interior e descoberto. Liturgia
perturbada como um andar sobre as pedras de uma ingreme calçada. Ele que como
aquele meio é uma condensação e fogueira de todas as possibilidades e
contradições. E “Side Street” um projéctil-cosmos em desaceleração, da
descolagem até à calada gravidade, mesmo podendo também ser o ponta de lança dos
muitos catálogos noirs ali da estante.
O Carlos Alemão batia com a cabeça nas paredes,
era humilhado, tinha alegria de viver. Há uns caralhos que tudo possuem e são
uns tristes. Joe Norson tem que poder continuar a beijar Cathy, nem que se
lixem todos, e os planos aproximados dela de cada vez tão mais exaltante do que
a aparição de um novo planeta protector, confirmam-mo. Tal contemplação,
parece-me a eternidade. Todas as voltas podem apanhar outras. Impossível
fugir-se de si e não ser apanhado. Volto a escrever, o Carlos Alemão casou-se e
ficou por lá. Até já.
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