sexta-feira, 8 de março de 2013

 
 
“O pouco dinheiro de que dispunha destinava-se quase exclusivamente ao tabaco e ao álcool, com vantagem para a bebida. A sua preferência não se devia à necessidade de afogar qualquer preocupação ou fase de desânimo, estados de espírito que raramente conhecia, pelo menos em consciência. Fazia-o apenas porque, enquanto emborcava as bebidas, não se achava inactivo. Encontrava-se desempregado e nada mais tinha para fazer.”
 
David Goodis, “Brigada Nocturna”
 
 
O vagabundo surrado da esquina pode de um tempo para o outro ser príncipe, tal como o burguês de merda do mais chique dos pátios acometer do mais nobre gesto. Um humilde e raro metamorfosear-se num acossado bicho vingativo ou o cabrão mais egocêntrico encher de amor o mais oposto dos corações. Um que tinha dinheiro a rodos até já a vênia me fez enquanto que um zé ninguém como eu me virou a cara à bocado. Faz oito anos vi duas vezes de seguida o mesmo filme, considerei-o obra-prima, outro dia voltei a ele, no tédio, e desliguei-o antes da palavra fim. Escrevendo isto já quase me perco e de lógicas sei cada vez menos. Tanta ficção, tanta vida, tanta terra, tanto fumo.
 
Já por aqui falei de uma tocante personagem da minha infância, que em retrospectiva a minha adolescência já não reconhece, embora mais do que a imagem me sobre e me arrepie a experiência. Ficou, e constactar e lembrar será para sempre confirmação da bondade e da humanidade no mais imprevisto dos redutos. Abundância e brilho e fulgor no corpo para tantos viciado. Era pela altura do Natal que o Carlos Alemão aparecia na casa da minha Tia Laide, a fim de colmatar falhas que os seus parentes de religião alheia à quadra lhe espetavam, e não somente na seia de vinte e quatro mas igualmente nos preparativos anteriores e consequentes dias seguintes de ressaca. Entre a sua casa e a da minha Tia distavam exíguos cinquenta metros, que eram encurtados ou estendidos pela tasca da Buraca, pelo que se os pais lhe aquecessem os nervos ou o arrefecessem à rua, era certo que se houvesse cem escudos num dos bolsos, ou se o fiado ou os comparsas vigorassem, ele chegaria aos festejos fervente e espalharia magia. E tais idas e vindas dariam para um novelo Proustiano que não ouso entrar. Fico-me pelos diversos serões antes das prendas que a minha família proporcionava depois do bacalhau e das batatas com o melhor azeite caseiro de que me recordo, tempo em que se eu tivesse sorte já podia molhar os lábios com o verde tinto praticamente espumante que o meu Tio Abelino tinha colhido no outono transacto. Havia algumas prendas mas rezava-se antes da comezaina, era sagrado. Depois das dez, horas da cerimoniosa lerpa, aquele fulminante jogo de cartas a dinheiro em que a vitória e os câmbios largos namoram com a bancarrota e o nada. O Carlos Alemão, já e sempre no seu blusão de couro gasto muito germânico e com o seu bigode genuinamente curtido, cozinhava uma de caixão à cova, uma que envergonhava qualquer um dos meus tios ou primos, e Deus sabe como a minha família aprecia o divino sumo de uva…não havia competição possível no teor alcoólico, todos os outros eram mansos acólitos em comparação e, num momento fantástico e perto do celestial que o meu posto de eterno espectador me proporcionou, o sublime Carlos amealhava uma para ele inaudita pipa de massa, copos e copos prometidos, centenas de SGs gigantes. Quase juro que se a telefonia estivesse ligada, mesmo sendo fins dos oitenta inícios dos noventa, não eram os Nirvana mas sim um Paulo Alexandre que franqueava os calafrios. Já não me lembro o que subitamente aconteceu, mas lembro-me e só vou esquecer isto depois que a fatal gadanha me calar, um sorriso se rasgou também inauditamente, uns olhos arregalaram, uma boca abreu, de lá de dentro saíram estas palavras, mais ou menos assim: “ó Miguel, agora vou ter que me ir embora, já estou cheio disto, podes jogar no meu lugar, até logo”. Palavras da minha vida… O Carlos desapareceu mais lesto do que as sombras e brisas da noite em tempos de maldição podem ser lestas, um cigarro de certeza que a iluminou, e eu fiquei com mais de dois contos de rei para gerir. Honrei a coisa e empenhei-me, sei que já de madrugada e em minha casa acariciei papel verde, avermelhado e metal prateado. É das primeiras memórias que tenho de algo maior do que o comum e que de certeza perto dos Deuses, Anjos ou Guerreiros de que por aí ia ouvindo falar. Um muito moderno arcaísmo. Não daquele mundo.
 
Anthony Mann realizou, como Ford ou Hawks ou Dwan, os mais belos e límpidos Westerns do cinema cinema. Também, como eles, de um desassombro e lucidez sem par. O que merecia aparecer aparecia, manifestava-se, extravasava, assim como as convicções de ferro davam sentido à palavra justiça. Portanto, em planuras secas ou linhas de comboio perdidas, a cavalo ou no trânsito dos infernos, na aridez ou na Nova Iorque dos anos cinquenta, cowboys ou gangsters, a moral e a construção dramática de Mann jamais entrava em perda ou se deixava corromper, filme a filme.
 
“Side Street” é de 1950, dois anos depois do par Farley Granger/Cathy O'Donnell se esconder nos filhos da noite de Nicholas Ray, funcionando este regresso da orbe dos mortos como um fascinante e ambíguo lado-b do filme de Ray. Muito de rompante e sem aviso entrámos neste universo contagioso, peganhoso e disperso, em picados vertiginosos e verdadeiramente pontiagudos, não limados e de uma sujidade aflorada. Cruzamento entre a febre de Sam Fuller e a condenação do Jules Dassin de “The Naked City”. Uma veemente voz-off, que pode ser a de um agente da lei ou a de qualquer um de nós, vomita-nos verdades esconsas e escondidas. Pura dialéctica e carga de porrada. “Uma selva arquitectónica onde a riqueza mais fabulosa e a mais profunda miséria vivem lado a lado.” “Nova Iorque, a mais movimentada, solitária, mais amável e mais cruel das cidades.” Estatísticas e factos, incertezas e promessas. Perguntas. Um ou outro lamento dissimulado. Pose dura. "Nova Iorque é todas as coisas e todos os lugares reunidos numa comunidade." "Esta cidade, como qualquer outra, é a soma de seu povo. Com as suas fragilidades, esperanças, medos, sonhos." "Estes, são eles tragédia ou comédia?"
 
Granger é um carteiro que vive na casa dos sogros, espera o filho da linda Cathy, um mais do que íntegro e inocente, por isso mesmo pronto a provar do eterno veneno que é o irracional, esse animal calado que vive no fundo de qualquer um de qualquer parte. Olha para umas notas no chão por acaso caídas e põe-se a sonhar com luxos para a sua amada, ainda não acordou e a sua mão já está a ser travada por quem de direito. Escapou, mas o destino ou lá quem sabe-a toda e vai facilitar-lhe as pulsões que entre mais coisas calam de certeza a lábia dos mais velhos acomodados da casa onde habita. A narrativa espraia-se de forma elementar e singular, porque pode acontecer a todos mas o suor é só desse muito assustado e muito novo na terra Joe Norson. Cai, rouba, promete, mente, carcome-se de arrependimento, embrulha-se nas teias do mal, vê cadáveres e vê santos, tem sorte e azar. Afunda-se cada vez mais e lá de baixo bate-lhe o clarão redentor. Levanta-se. Nunca mais vai tombar numa assim ou então na próxima é de vez.

“Side Street” é a colocação em cena, com as suas diversas camadas de luzes e de corpos em rodopio e luta eterna sobre a totalidade do palco-universo, da loucura e da perdição fugaz, próxima, inescapável. Aquela ali que nos vigia. Rampa à danação. E esta cidade é todo o mundo, todos os universos, todas as vias lácteas, todas as matérias e espíritos. Julgamentos, leis, cânones, anarquias, sagrados. Em ebulição.
 
O senhor lá dos altos cala-se e só voltaremos a ouvir o off no término, depois de uma verdadeira caminhada cicatrizante ou reveladora que Robert Bresson ou Roberto Rossellini gostariam de ver e de escutar. Da violência latente e feroz do começo passámos para os ferimentos e para os silêncios, males da terra e do homem, fogos comuns. Se Mann entrou a matar, a câmara como um martelo, logo se vai fechar com um tipo e as suas insónias e tremores. E achar uma silenciosa poesia rescendente que é o eco e o trabalho da constituição e do berço original de Norson. Rumor interior e descoberto. Liturgia perturbada como um andar sobre as pedras de uma ingreme calçada. Ele que como aquele meio é uma condensação e fogueira de todas as possibilidades e contradições. E “Side Street” um projéctil-cosmos em desaceleração, da descolagem até à calada gravidade, mesmo podendo também ser o ponta de lança dos muitos catálogos noirs ali da estante.
 
O Carlos Alemão batia com a cabeça nas paredes, era humilhado, tinha alegria de viver. Há uns caralhos que tudo possuem e são uns tristes. Joe Norson tem que poder continuar a beijar Cathy, nem que se lixem todos, e os planos aproximados dela de cada vez tão mais exaltante do que a aparição de um novo planeta protector, confirmam-mo. Tal contemplação, parece-me a eternidade. Todas as voltas podem apanhar outras. Impossível fugir-se de si e não ser apanhado. Volto a escrever, o Carlos Alemão casou-se e ficou por lá. Até já.

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