Robert Siodmak sempre esteve vidrado na questão
da aparência e do fundo, imagem e verdade, máscaras, cópias macabras, espelhos
disformes, negros, ilusionistas. Também vidrado, e a palavra parece colar-se
bem, a magnetismos e a grandes-planos obsessivos, onde a boneca ou o manequim
pode enfeitiçar mais que a sua matriz. Se “The Dark Mirror” é a apoteose deste universo
estonteante e perversamente doentio, o mais horroroso, de puro horror mesmo,
será a “Phantom Lady” de 1944, dois anos antes do filme das irmãs.
Porque se esta história de contornos policiais
tipicamente William Irish parece atar no seu término todas as pontas, a sua
narrativa, que só se pode considerar frágil ou inverosímil do mesmo modo que o
nosso quotidiano terráqueo é logicamente (ou ilogicamente) diabólico, o que
mais ressalta à vista e à contorção cerebral é a luz, essa luz perturbantemente
desenhada ou sonhada que o tal criminoso afirma que lhe fere os olhos.
Jack Marlow é um pobre coitado que depois de uma
discussão com a mulher se decide entregar aos whiskeys num balcão qualquer,
onde vai encontrar um elemento do sexo oposto mais triste do que ele. Olhares
para aqui, para ali, oferendas, descompromissos, e estão dentro de um táxi para
um musical qualquer. Não trocam nomes nem moradas. Parece a perdição costumeira,
mais vai sê-la noutro sentido. Vão à sua vida e Jack é acusado de estrangular a
esposa que deixou só.
Desaparece o primeiro véu fantasmático sem
identidade e entra em campo o segundo, a pasmosa Carol que trabalha para ele, essa
carnal irrealidade perigosa que vai levar ao suicídio e ao céu antes do inferno
quem ela decide perseguir ou apontar olhos. Apaixona-se pelo patrão que está
prestes a quinar e para o resgatar entra em correspondência directa com a abusadora
da demência.
Dois fantasmas que se intrometem à normalidade,
que a entrecruzam, a vilipendiam, se tocam a dado momento e se materializam, para
aparecer o inspector do crime e o próprio criminoso, que descobrimos antes do
filme dobrar a metade. Nada de carpinteirados guiões ou golpes baixos dos criativos…reflexos
e mais reflexos e os protagonistas ou artistas principais vão-se sucedendo,
desmultiplicando, fundindo, desaparecendo, para uma nossa emancipadora interactividade.
Cena crucial, se de uma espiral ou de uma escada
em caracol se pode sacar uma singularidade ou relevo, é aquela em que inspector
e culpado se encontram fechados no camarim da artista do chapéu salvador.
Chapéu gêmeo, mais uma vez. A paranoia do suposto louco começa a borbulhar, as
mãos a tremer, a autoridade a disparar pontadas tais como “Não é o aspecto do
homem que conta, é como funciona a sua mente”, ou “Qualquer dia conseguimos
educar a mente como o corpo”, e claro que o outro, o negativo, começa a entrar
em parafuso, a flipar, entre o Santo e o Demónio também ali posto em causa, de
um espectro ao outro.
Foi um momento tão pungente como o da dança e lascívia
que Carol teve com o baterista antes do colapso deste, e que desfaz desde logo
as dúvidas a quem pensava estar na presença do milionésimo suspense last minute
rescue afinado por um qualquer Griffith evoluído. Intriga, género,
possivelmente laivos de estilo, tudo isso só se mostra não ainda para um estudo
sobre a luz ou o branco e preto e as cinzas, antes para o seu melindre, transfiguração,
modelagem, a consciência de que cientificamente e mentalmente é dela que
dependemos, que nos salvámos, caímos ou nos entregámos… Milhentas combinações,
possibilidades, impossibilidades, efemeridades, casualidades, intempéries.
E lá está, a mestria de Siodmak e a sua rodagem nesta
vida retiram toda e qualquer ganga e gordura que uma empresa destas pediria, os
produtores exigiriam, etc., esses erros habituais de se confundir uma prática
formal de luzes, sombras e matéria, e factor humano, assim como na construção
de uma casa importa em primeiro a força dos alicerces, com lições e teses
sociológicas, tipológicas, psicológicas, medicinais, ciências estanques ou, na
mesma medida, esoterismos, espiritualidades de pacotilha, masturbações.
Alucinatórias imagens que emanam do real ou da
mente? Sem respostas, apesar do happy end. Concreto e abstracto respiram no
mesmo ar, como os vivos calcam as terras de mortos. Assim como o Vasco Santana
nota alma num candeeiro da via pública e lhe pede lume, e o factor álcool conta
ou não conta, assim como o meu primo Paulo se apaixonou pela minha prima pois
numa certa discoteca uma merdosa bola berrante o iluminou e o desvelou defronte
dela no momento certíssimo, tal como a imagem cruel e persistente pode manter
no manicómio o pobre desgraçado que inocentemente a vislumbrou, todos os
protagonistas de “Phantom Lady” e todos os do lado de cá da tela demoníaca, vão
depender de intensidades, ângulos, sorte dessa coisa fugidia, impalpável,
fatal. Nada mais que luz.
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