sábado, 13 de abril de 2013

 
 

Importa afirmar que “Not Wanted” não tem absolutamente nada a ver com qualquer tipo de bandeira temática, no caso a maternidade e as suas possíveis consequências nefastas, tanto quanto “The Bigamist” não é realmente sobre isso. Logo no primeiro plano temos uma juvenil Sally Forrest, perfeita sósia da realizadora de emergência Ida Lupino, a mesma fragilidade e o mesmo risco, a subir demoradamente uma larga e ingreme calçada, até se encostar literalmente na lente reveladora. Um ruído de fora alerta-nos para um bebé, ela não resiste ao impulso e vai buscá-lo e embalá-lo, acaba na prisão. Notámos logo ali que não estamos no começo de uma história ou de um ciclo mas perto do seu fim, e que no meio que ainda nos falta decorreu uma atormentada cavalgada de acontecimentos que para muitos levaria uma longa vida a sucederem. Paixões, encontros, desencontros, fugas, começos. Tudo o que importa e dói já lhe marca a dolorida face e vai ser impresso ao interior fílmico.

Nenhuma sociologia, como nenhuma pressão ou espezinhamento psicológico e formal da parte da encenação, o perfeito contrário de um Michael Haneke ou de um Lars Von Trier, antes uma observação precisa, imperturbável, incorrupta, onde o que explode, microscopicamente ou expansivamente, se passa lá dentro do enquadramento que agarra a vida. Nada de excitação, toda a tensão, num voraz instinto do real e das suas modelações múltiplas. Uma luz qualquer que entra pelos olhos adentro e evidencia, um virar de rosto denunciador, alguém em rota de colisão com o décor.

E se Lupino herda o classicismo do meio ou de quem começou por assumir estes comandos, Elmer Clifton que morreu ao terceiro dia de rodagem e que tem de ter mérito, o que mais me chocou são rupturas singularíssimas e logo insuspeitas correspondências com a modernidade que Roberto Rossellini andava a inventar naqueles tempos e que culminaria em “Stromboli” ou na “Viaggio in Italia”. E se falo no italiano tenho de falar acima de tudo num francês posterior a estes todos, Philippe Garrel, que já pode encontrar aqui muito do lirismo e amargura que captou em “Les hautes solitudes”.

Porque a manufactura deste filme de 1949 é a reportagem da debilidade e da indecisão de uma criatura ao deus dará em tão grandes espaços solventes, onde ninguém parece notar a sua agonia senão a científica e mecânica câmara, bem como um anjo da guarda do destino. Terror ou felicidade das transfigurações ou mutações que só o cinematografo assim desenha, nas quais Sally Forrest pode de um instante para o outro passar de princesa a zombie, de drogada ou de doente mental a presença serena e iluminada.

Neste cosmo Lupino alcança o genuíno e mirífico segredo dos privilegiados e dos humildes, esse do suicida fogo lírico advir da tranquila justeza de um olhar e de uma construção solidificada, compreensiva e comprometida, onde só uma força maior que se tem de seguir e sentir permite ajustamentos e reenquadramentos. A mesma coisa para os fogachos subjectivos ou para os atormentados desfoques, que estão longe de ideias de estilização, mas só aparecem como rebentamento da realidade que o delírio e a febre franqueiam. Contemplação também, desassombrada e apaixonada, e lembre-se para não se esquecer as cenas do autocarro, da coca-cola e do carrossel, todas apanhadas com o mesmo pudor e pasmo dos quartos de juventude.

Quartos que mais alguns habitaram, também antes dos já referidos, porventura desde a descoberta, essa família de que fizeram depois parte Chantal Akerman, Andy Warhol ou Fernando Lopes, e que nos dias de hoje a poderão integrar, quem sabe, “Ne change rien”, “Two Lovers” e o seu deambulatório Joaquin Phoenix, o mundo físico e virtual do Zhang Ke Jia de “The World”. Ou seja, esses que põe a simples observação à frente da ambicionada poética, e que sabem que ela virá ao de cima, muito naturalmente, se o que estiver a ser observado, com toda a dança das conjunções e do imprevisto, tiver chama para tal. Resumindo, disponibilidade praticamente em desuso.

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