A cada visão de “Out of The Past”, o meu
Tourneur, há sempre algo de particular que se sobrepõe, que eu acredito que
seja o que realmente interessa, o peso bruto. Já foram as minhas associações
com os filmes molhados, pegajosos, lúgubres e cheios de panteras e demais
bichos feitos para a RKO. O suado e coberto erotismo triangular
Mitchum-Greer-Carson. Evidentemente a relação com a mulher fatal que o faz
estar noite após noite a emborcar copos e a corroer-se para que ela dê de si. A
inocência do compromisso com aquela menina muito nova e muito brilhante da
pequena vila que se lhe entregará sempre e tudo lhe perdoará. Os ambientes
retumbantes. Os fumos, luzes de faróis e perfume de tabaco. As sombras que
literalmente esquartejam cada enquadramento, cada cena, cada sequência, tudo e
todos. A forma como a malandra e impiedosa da vida dá baile aos destinos e
ainda mais ao cinema, onde quem vier com rótulos de noir é porque ainda lhe
falta experimentar muito. E Robert Mitchum, que é do que estou a falar sem
nomear, sempre ele, o homem mais magoado e triste que o cinema americano me deu
a ver e sentir.
Aqui é Jeff, gabardina adejante que suponho acinzentada,
milhares de cigarros para confortar e velar emoções, rosto desconsolado como
noites de intenso breu sem luar. Um perdido irrealizado entre fortes convicções
e fortes dúvidas, nada a ver com masoquismos mas antes com escritas no vento,
que cai quando está perto do cerne, e que o vê fugir sempre para longe apesar
da bondade e da persistência. Abre o filme e começamos por vê-lo lá numa
terrinha minúscula junto a um rio em que se pesca, onde ganha a vidinha num
posto de gasolina ainda mais minúsculo. Muito triste mesmo entre suaves colos e
promessas reconfortantes. A coisa vai lentamente dando para o torto e sabemos e
vemos que já foi um detective, desprendido e rigoroso, que longe deixou que
éticas e profissionalismos soçobrassem ao olhar e ao chamamento de uma visão
que lhe pareceu incandescente e parecida com nada.
Essa outra vida passada mas jamais apagada, esse
deslumbramento escorregadio, chega-nos num suavíssimo flashback, quando nada
ainda se tinha intrincado e ele estava supostamente com todas as cartas na mão.
Mas Jeff é alguém da linha recta e do irremediável, onde perspectivas tortas e
evasões só servem para atirar areia aos olhos do cerne. Tão solitário, mais
sozinho mesmo quando acompanhado, e não se vai alegrar muito com noites mágicas
nas areias tórridas da praia ou escapadas que poderiam ser o céu ou o orgasmo.
Jeff igual a Robert Mitchum, uma impassibilidade convicta e desarmante. E a
mistura de tempos narrativos não é virtuosismo ou despiste, é puro lamento
estupefacto. Cada vez mais à nora, fechado, enigmático. E não chorando por
isso, dos que bebe sempre mais um.
A coisa enrola-se ou distende-se muito mais,
mata-se e morre-se. A inocente loira suspira por ele, a aura e os contornos da
fatalista tornam-se intensos que cegam, negra e de capuz maléfico pronta para o
beijo mortal. Jeff engana-se nas caricias, amarra-se e deixa-se afundar em atmosferas,
desejos e jogos que despreza. Não vai conseguir regressar de lá do fundo, nem
ao menos voltar uns momentos a casa como no “The Lusty Men”, e os que ficam
para contar a sua história jamais acederão a tamanha complexidade e
perplexidade.
Porque Jeff, Mitchum, é dos que saíram do berço
trágicos. Que o brilho do olhar e a sua profundidade não deixam enganar. Que
não assentam nunca e sempre o diabo se ri dos planos para o futuro. Não se
salvam nem se deixam salvar de um precipício aberto e prometido mesmo que o
anjo mais terno lhe coloque um degrau estanque. Uma precisa sombra no meio de
tantas que só um que outro privilegiado poderá demarcar nos instantes urgentíssimos.
Sempre em queda livre sobretudo quando parece sossegado ou o riso se lhe escapa
da obscuridade obscura. O inocente abatido pela mentira. Isto, em termos
daqueles absolutos que nos engolem.
E “Out of The Past” é assim, não me parece haver
dúvidas agora, a longa e fugaz caminhada de um corpo e de uma alma prometidas
cedo à campa ou a alguém lá muito de cima que o reclamou na origem. Dissolvência
de uma amansada tortura onde a ficção não produz grandes efeitos. Por onde
passa apega tonturas, alastra suspensões e provisórios. Felicidade ilusória e
dura infelicidade. Talvez uma daquelas paixões, ou um pouco de cada uma, tenham
valido a terra e a respiração. Talvez a fogosidade calada fosse superlativa.
Talvez não.
E as sombras de Tourneur e do igualmente
magnifico fotógrafo Nicholas Musuraca, as silhuetas e a indefinição, aparências
ténues e esboços, a aspereza e a melancolia, as ausências de festa, são, não
qualquer ilustração de coisa alguma, sim concordância e aceitação, algo como
fidelidade, entre o mistério e o fundo daquele homem com o mundo que se
projecta para fora, aceitam-se os espelhos da alma. Por via desta arte tão maleável
e sensível que se desenha a luz, o cinema, quando certo e justo nada faz de
preconcebido mas antes segue o pulsar e o movimento específicos, as nuances e
tesouros de cada um mesmo que condenados. Como devoções a santos e a mártires.
Escutares autónomos. Aqui é Robert Mitchum, que faz corpo e correspondência com
Jeff, e Tourneur, com total dedicação e compreensão, soube vê-lo e apreendê-lo.
Nada de mais alto se pode almejar.
Gosto mesmo muito, também não o saberia dizer
quanto, de Joaquim Phoenix, no seu melhor e com os melhores, o maior actor de
várias gerações e um dos últimos herdeiros desse certo low profile, igualmente
desconsolado e perigosamente contido. Mas, como me dizia um amigo meu, para
afirmar uma personalidade e uma gravidade sem dúvida anacrónicas, onde reina o
implícito e aquela indiferença desarmante, Phoenix teve a necessidade de
desaparecer de circulação e de se fazer excêntrica estrela de música com
direito a uma espécie de documentário, que mais pareceu alimento para o ego do
que cicatrizante. Talvez poderes das tecnologias leves, das redes sociais ou
dos agentes, talvez atracção superior a ele próprio, talvez nada disto. Em
Mitchum, mais do que todas as mágoas e desilusões, o que está sempre inscrito
em cada poro, cada expressão mínima ou falta dela, é a sua natureza irrefutável.
O mesmo nos ecrãs como na vida, aposto sozinho, sem barulho.
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