sábado, 27 de abril de 2013
A propósito do por agora último filme de Manoel de Oliveira, “O Gebo e a Sombra”, vem-me imediatamente à memória referências históricas ao cinema de Howard Hawks: o que é, é; o que poderia ser não tem qualquer importância. Nos dois grandes casos, a animalidade intrínseca a tudo o que respira ou as pujanças dos meios, deixam tudo em aberto. E se quanto a Hawks poderíamos estar conversados, e se não quisermos não estamos, pode-se acabar por dizer que ambos fazem cinema de Homens, entenda-se como se quiser.
Uma área interior aparentemente reduzida, duas ou três ruas da parte de fora, o mínimo de céu e a recusa dos tectos, o chão indispensável, meia dúzia de actores olhados de frente e à sua altura, uma prosa longa e de significâncias densíssimas que qualquer um dos presentes sustenta em admirável cadência e emoção. Prosa que vem de Raul Brandão e é vertida para um francês límpido, mas pode ser facilmente espelhada para os dias de hoje, permitindo vastos confrontos e guerras intermináveis com dilemas políticos, sociais e morais. Mas como Oliveira é sempre ambíguo e aqui mais do que nunca, esta pode ser simplesmente a história de um velho homem que ama de tal maneira a sua mulher que prefere humilhar-se e trair-se, a deixá-la ter um desgosto que se adivinha fatal. Sendo o pivô de toda esta disposição o filho de ambos, um fantasmático Ricardo Trepa, esse sim fiel ao fundo do seu ser, casualidade de uma humanidade duvidosa, alguém que viu do limiar de uma sepultura e não mais teve dúvidas.
E este é o supra-sumo da arte fundamental de Oliveira porque atinge um ponto máximo de depuração do que ele sempre perseguiu, onde a ciência da mise-en-scène, a matemática, as marcações, proporções e geometrias sem qualquer margem para erros, traçam os caminhos para o máximo de feérie, de caos, de liberdade, de desequilíbrio e, em primeira ou última instância, chegam à complexidade da fé como nunca se chegou. Tal como a hierática Leonor Silveira do “Vale Abraão” se volvia presença além erótica.
O realizador é sempre Deus, sobretudo quando não dá de si ou não se justifica, com o controle total das ferramentas e da ordenação, do texto e do quadro, da moral, no entanto, são as coisas que sempre lhe fogem e que dependem de forças outras ainda maiores e invisíveis, que levam tudo para o imponderável e para a selvageria, e que são e sempre foram os olhos e a presença dos actores, a sua tensão, o seu fogo único; assim como pode ser a deriva e a narrativa de uma luz de candeia, uma sombra ou um volume ingovernável, uma deslocação de ar imperceptível.
Se o pai Michael Lonsdale vive a sua vida às voltas com contas e equações profissionais, o filho é um gatuno sem remorsos; do mesmo modo que as posições cirúrgicas de câmara servem sempre o propósito de cada cena, para mostrar da melhor forma o que vai suceder, aparece-nos em contracorrente a música que, nos breves interstícios, destroem qualquer possível robótica, tudo descolando em plenos voos. Num dos ângulos mais inauditos, aquele que acaba com o roubo do saco de dinheiro por parte do filho, essa lateralidade passa o tempo a deixar-nos em suspenso no canto inferior esquerdo do enquadramento, a picar-nos a cabeça, para estourar no momento final do saque e fazer todo um sentido que é o terrível do filme. Para o paraíso fazer sentido, talvez se tenha de ver o inferno, e vice-versa. Para se pensar em arte, tem de se pensar em fome, senti-la, e vide um dos mais prodigiosos momentos da carreira de Luís Miguel Cintra, onde até domina uma flauta realmente mágica. Para que tudo abale num filme, é preciso conhecer cada coisa ao limite, cada fundação, cada esconso, a diagonal mais insignificante, só depois tudo se pode pôr em causa e se perder.
Entre bêbados que cambaleiam nas calçadas, santos que assistem impassíveis e a imagem final paralisada, Oliveira resolve todos os falsos problemas de realismo, distanciação e memória que as últimas coqueluches festivaleiras confundiram. Nos limites do falso e do estúdio, chega-nos um limite insuportável de força de verdade e de evidência. Onde as grandes questões de Brandão são as de Nietzsche como as de “Amor de Perdição”, de todos os homens, amor ou dinheiro, explanadas pela e na circularidade do espaço e do tempo que vai daqui e de agora até ao imemorial.
Que seja uma produção “O Som e a Fúria”, onde, e resguardando nobres excepções, se tem privilegiado e depois coroado as cascas de pós-produção e as velhacas novidades infames ao que se convoca, como quem cospe no mais belo dos pratos que provou, atrofiando-se de uma só vez as duas principais dimensões desta arte, não se percebendo que sem se gizar bem o espaço e não se ligando ao esculpir do tal do tempo da maneira certa ao que se propõe, sem estas coisas essenciais do que haveria de ser um oficio e não uma passadeira vermelha, nunca se conseguirá erguer nada, nem casas, nem troncos, nem charcos, nem caras, nada; ou esses brinquedos orgulhosos de atirarem para as telas uma nova gente feita de pimba, palhaçada e degeneração, que depois muitos, do lado de fora, vão imitar, param uma sociedade cada vez mais fixe; concursos onde os nadas informes, o fazer inesquecível ou sensorial passam como o último grito radical, Godard século vinte e um; aí, no centro das pseudo revoluções e dos prémios, foi onde Manoel de Oliveira mais agigantou a sua bendita dualidade Dr. Jekyll and Mr. Hyde, entre o super cirurgião ou inventor e o super bandido que estremece. Só não vê quem é cego ou burro, todos humilhados entre as próprias portas, um a um. Ou seja, justiça reposta pelas mais tortas linhas. Ámen.
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