domingo, 1 de junho de 2014

 
 
 
De uma só vez Leo McCarey atingiu com “Going My Way” um dos pontos mais altos do cinema clássico americano e do cinema tout court. A sua construção é absolutamente desse tempo e desse lugar e totalmente surpreendente, pronunciadora do muito que se ousaria décadas depois. A história é conhecida, o padre Chuck O'Malley do comovente como um mano mais velho Bing Crosby dirige-se para a sua nova paróquia, e nesse caminho mostra logo ao que vem e revela a sua personalidade. Joga basebol com os traquinas da rua, assume um vidro partido a uma das ovelhas do rebanho há muito desertada, conhece a mais afamada fiel que não consegue manter a boca fechada e funciona assim como jornal dos que não leem, molha as sacrossantas vestimentas de maneira ridícula, entra finalmente na nova casa. Para aparecer ao velho Sacerdote Fitzgibbon, a quem ele vem substituir sem coragem para lhe dizer, todo desportivo e com a aparência de tudo menos de bom pastor. Homem moderno, para a frente, positivo e com uma paixão pela vida, pela música, pelo desporto, pelo género humano e suas diferenças que vai entrar em choque com a tradição para logo esse choque se desvanecer devido ao gigantesco amor e claridade que a todos abarca. Porque o mais admirável é que nada disso ele impõe à força ou sequer pronuncia. Não, a sua formação e a sua essência faz que ele vá levando as coisas para a frente sem pedir licença nem perdão, mas com uma naturalidade que McCarey conserva num registo quase direto onde tudo se desenrola em consonância com a sua imperturbabilidade e conhecimento, lucidez e certeza. Maneira de ser que se pressente antiga, de quem muito viveu, aguentou, conheceu, transformou, e agora está num patamar de desassombro que lhe permite arcar com o mundo inteiro em particular leveza.
 
Este grande cineasta a que tantas vezes não se deu o devido valor, um pioneiro da linha de Griffith ou Borzage, seguiu esse mesmo caminho de grandeza dos sentimentos, mas foi transformando o desmesurado lírico e a desmesurada comoção numa coisa totalmente inata. O lírico está lá, nos coros de anjos de Botticelli milagrosamente de acordo ou nos jardins com arabescas fontes onde os passarinhos pousam para molhar o bico; como a emoção, como esquecer ou suportar toda a reação de Fitzgibbon ao perceber que O'Malley nada lhe impôs para não o magoar, entre muitos exemplos possíveis, este é talvez o cúmulo. Mas nada se destaca, nem salienta, muito menos berra, porque está precisamente interiorizado, não só no protagonista como inevitavelmente na luz que se apega às coisas e faz da sua transcendência e transfiguração um acto secreto, indizível, corpo com corpo abraçado. Assim, já não há resquício de melodrama como género bem regrado, nem qualquer catálogo narrativo advindo da temático ou do ar do tempo, moral adjacente ou retórica cristã à boleia.
 
Duas horas de filme e temos uma curta cena de missa com um curto sermão já destituído de tudo isso. Comecei por referir que estamos com todos os membros em Hollywood - e Louis Skorecki chegou a escrever que McCarey pertence mais a esse mundo do que Hawks ou Hitchcock – mas então é reparar no que se passa na concisão e aprumo dos blocos com que se cose este todo coerente e livre como essas mentes que o percorrem. Temos números musicais e muitos ensaios pormenorizados de técnica e sensibilidade, não só com o coro que o segue confiantemente pois o reconheceu como um deles, mas com adolescentes travessas fugidas aos pais que não se importam com eventuais ingressos nos cabarés de má fama; ou ainda um velho amor de antes da profissão de fé que se tornou estrela de grandes palcos mas que se une a ele por reconhecido espanto. Jogos de golfe, damas, idas ao basebol em conjunto pagas do bolso do pároco. Embates com sedentos cobradores de hipotecas e produtores musicais que se descobrem desmascarados por uma frontalidade sem qualquer segundo sentido que não o da sua transparência. Belíssimos e com toda a certeza saborosíssimos repastos que duram em sentido de humor que se espalha ao resto. Cenas onde não se passa nada além da extrema bondade em filigrana, olhares, não ditos significantes. Pares improváveis que se formam, desprovidos de todas as imaginações dos escribas, muito mais abençoados pela mão caseira de O'Malley. E conversas, muitas conversas onde o prodigioso diálogo não dá da caneta e flui como na vida sublimada pela grande arte que também não se escancara. As chamadas conversation pieces largas e espessas – e mesmo essas não são enlevadas, sem paradoxos - que depois fariam furor pela pós-nouvelle vague francesa – Jean Eustache – no neoclassicismo – o “Scarecrow” de Jerry Schatzberg – como no pós-modernismo – Quentin Tarantino. Vida, precisamente e sem romantismos ou falsa inocência, cada cena, as largas como as breves, não se resolvem em si como deve ser num argumento bem acabado que comporta o lugar, o interior ou o exterior ou se é dia ou noite, mas sim se corresponde, interlaça ou desentrelaça com um tempo posterior ou com o que já passou e pode voltar ou não. Onde até o milagre parece ceder o mérito ao trabalho e acreditar das pessoas – veja-se o incêndio triste que destruiu quarenta e cinco anos de trabalho, e a recuperação ainda mais fulgurante. Destino e convicção, o credo mais alto.
 
Muito mais, tudo o mais haveria a dizer, mas no final, o generosíssimo Padre como o generosíssimo cineasta, fazem uma retirada assim mesmo, tão ao de leve e calada que extrema todos os sentidos, descarna e faz chorar como que por dentro. Por dentro, de onde o limite da objectividade e da subjectividade se agregam como no mais sublime dos casamentos. E percebemos e sentimos que todo aquele movimento, sonoridade, diversão, palavras, acanhamento, existiu para dar réplica ao mais tramado dos comparsas, a solidão, que existe em todas as partes desta obra, essa tramada que não grita. Toda esta arte do ínfimo que hoje só parece permitida pelo diletantismo. Numa ou duas salas escondidas onde um ou outro cheio de paixão ou assustado se pode esconder e abrir depois da luz baixar. Na casa de um amigo em sessão privadíssima. Para a namorada, de mãos vazias. Sem penitência, assim mesmo. Going My Way, como a demanda o título, uma ordem. No caso destes dois, caminho aberto para “The Bells of St. Mary's”, para Ingrid Bergman, e para outro tipo de visões. Para nós, continuar.

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