domingo, 15 de junho de 2014

 
 
 
Will Rogers, o indivíduo mais comum e raro na terra, faz de Pike Peters num filme do realizador terreno e de outro mundo chamado Frank Borzage. Pike, assim gosta que lhe chamem, tem uma garagem de automóveis na vilazinha mais escondida da América, CLAREMORE, nas bandas do OKLAHOMA. E sente-se perfeitamente feliz e concretizado desse modo, com uma esposa que ama sem serem precisas provas desde que ela como professora não ligou nenhuma às diferenças de meio e para ele sorriu, cheio de amigos que passam o tempo na oficina mesmo que seja só para a conversa ou para convites malandros, e uns filhos daqueles que todos os demais invejam, jovens, belos e desejados. Até que um dia…velha história. Os filhos e a mãe descobrem o petróleo da perdição que o pai despreza e quase vão deitar tudo a perder. Ela, a mãe brilhante e sorridente, resolve que devem ir todos conhecer Paris, para ganharem cultura, amplitude de ponto de vista, experiência, enfim, distinção, enfim, coisas que eles sempre tiveram em sobra sem o saberem ou dizerem.
 
E vão mesmo, vão mesmo para esses cabarets e holofotes que fizeram a fama da cidade-luz, vão ter com mulheres despidas de preconceitos e de quase tudo o resto, com condes vestidos demais e demais altivos que cobram a sua honrada presença à hora e a peso de ouro ou ouro negro, títulos intocáveis em vez de pessoas com as virtudes e os defeitos da nossa salvação, todos os brilhos corrompidos escandalosamente e assim atraentes como o mais urgente íman, peçonhentos a uma brancura fora de lugar, mancha persistente e estranha aos que fazem da coca-cola o seu champanhe e do coração o seu guia. Nada invejável, Pike começa a falar com a solidão que nunca lhe tinha passado cartão, daí que o espaço que sempre se alongou até ao infinito começar a encurtar e a atrofiar na sua cabeça e consequentemente nos horizontes visíveis à posta em cena de Borzage. Aconteceu que a mãe, a filha e o filho, uns mais do que outros, esqueceram-se momentaneamente de como são feitos, do que provaram, o que tocaram outrora e viram, do que é o tudo e o nada, o chão e o tecto, material e fluido. E em castelos sumptuosos e já mais falsos do que Judas e pelas ruas da vergonha se querem vender e passar por aquilo que jamais serão, ceder a uma tentação ancestral que os acaricia como as plumas que por lá bajulam. A mãe não se importa de vender a filha e de largar o filho à bicharada, como não se importa de passar de bonita a feia.
 
Só que… Will Rogers só pode continuar a ser Will Rogers, como Doctor Bull ou Judge Priest noutras vidas, e importa-se mesmo. Não cede, mesmo se sussurra quase humilhado à mulher que sempre amará que o leve com ele aos antros, ou se se faz doente para ela resplandecer em pleno, depois de entrar na tal fortaleza sem graça e com nada para fazer, fortaleza da pequenez. Por isso ele vai à guerra, a guerra da sua origem posta em cheque, do seu ser primeiro e impossível de pôr na lama, e nunca é banana, jamais banana ou coitadinho. Assim, desce de pijama para o festim em que não cabe e embebeda-se com uma dita e ambígua figura da alta aristocracia tão aborrecido como ele por tanta aparência, volve-se guerreiro de armadura e espada de orgulho, fica-lhe grato e abre-lhe as portas da CLAREMORE que nunca pensou fechar, e mete a correr o advogado que lhe pede dinheiro pela mão da filha, entre ameaças e aquela dureza e antiguidade muito séria de quem percebe a calunia pelo cheiro. Pike não deixou que o mordomo particular lhe vestisse as calças, batizou-o como nas suas brincadeiras americanas, detestou o caviar e chorou os ovos das galinhas caseiras, mas nem por tais ofensas ignorou as mulheres de má fama, sentou-se mesmo com elas e escutou-as, serviu-se delas para causas elevadas e de certeza que lhes ensinou coisas que elas não mais pensavam possíveis. E ao não ceder, embora o sangue que lhe ferve nas veias e nas guelras o metesse sempre na sua linha, ao não fazer credo do “Na frança come-se e bebe-se, para a américa escreve-se”, ao amar sempre os amados não importa porquê e ao reconhecer o mal em cada esquina, recuperou os seus e o bem, a honestidade, o primordial que na loucura e no vórtice do vil dinheiro e da fama quase foi enterrado.
 
O discurso final, entre Abraham Lincoln e o mais duro e terno semblante de cada poiso em cada terra, no qual o indivíduo dos motores e dos óleos fala em Napoleão e nos hábitos mundanos dos Romanos, mas também das aventuras que a juventude e a carne necessita, e de cavalos e de carros modernos, inclui a franqueza esventrada da mesma maneira que a ironia e o humor, numa completude e numa amplitude de visão e afecto que o confirma como o mais sofisticado, complexo, elegante, singelo, amoroso, violento, homem, só homem, que vimos no filme, neste filme que na sua simplicidade praticamente abstrata se limita a registar nas suas linhas e volumes, gradações do escuro e do claro sem medo da claridade extravasante e jubilatória mesmo nas tristezas, a gama toda de uma humanidade imprevisível. Chegando ao grande fresco, à grande pintura, onde esse Pike que poderia ser, acredito e quero acreditar, um António Reis ou um Michel Giacometti, e também os seres nunca anacrónicos de integridade que eles amaram e apreenderam de maneira plena, atravessou como numa odisseia, como numa gesta épica do dia-a-dia, todas as coisas, viu de tudo e cheirou de tudo, e fez o resgate. Com ferros e com murmúrios. Murraças e mimos. Aproveitando de tudo o que sucedeu. Sempre fiel.
 
“They Had to See Paris”, além de ser apenas um filme e não uma negociata, é ainda o quê? À semelhança do título imperativo e necessário, algo de uma franqueza e abertura, de uma lucidez e beleza lancinante advinda do que se sente verdadeiramente de dentro, esses abalos pertíssimos do Éden, uma pedra ou um sonho precioso de uma fragilidade e de um fulgor indizíveis, uma daquelas obras que não podem entrar nos apuramentos dos melhores filmes de sempre, nem serem estudadas nas cadeiras de análise de filmes ou realização, muito menos fazerem parte do cardápio dos suplementos semanais da arte e da cultura como último grito ou prato de um dia ou menos. Da mesma família e morfologia dos mais secretos brados de Minnelli, do McCarey que não faz as caixas luxosas de DVDs, de um Ted Kotcheff em VHS roçado até romper, do “Act of Violence” portentoso e ferido de um Fred Zinnemann arrumado na gaveta dos académicos que enlaça com o também neorrealista “Ride The Pink Horse” onde o gordo Panchito diz ao Robert Montgomery que dá o peito às balas e mete as mãos na massa: “Eu... só fico feliz quando não tenho nada. Nada... e um amigo.”, das vozes encolhidas dos fatigados de Jacques Tourneur, ainda outro Borzage estelar: o par que em “Living on Velvet” após ter experimentado o etéreo e o nada e o outro lado do passeio continuou uno e sorridente por entre as névoas percebidas, da leitura policial a um euro escavacada no terreiro da feira da ladra, um Dias de Melo encontrado na rodoviária das esperas quando nada se espera, qualquer coisa do Robert Mulligan em sessão dupla com John Ford ou a saga Rocky, as gravuras praticamente apagadas em lugarejos remotos onde o curioso do museu não chega, nos espaços sem gente de um Louvre, da livre poesia de Virgínia Dias que encerra o universo ou dos tapetes manufacturados da Tia Amélia sem capa de prestígio, a voz dilacerada de Chavela Vargas ou a doce de Julie London, o amigo Carlos Alemão da infância e assim mesmo de agora apesar de.
 
Coisas que não podem tombar no pecado da usura, nem na boca e nas teorias dos vigaristas oficiais e enfatuados, coisas que mesmo quem ama não anda por aí a gritar para praças públicas, que prefere guardá-las para assim preencher as solidões e alegrias deste caminho, como oferenda aos que escolheram a via desamparada. “They Had to See Paris”, ou “Some Came Running”, não servem para teses de doutoramento, defesas catedráticas, críticas diárias ou resenhas buriladas, peso e sujidade de estrelinhas, para esquemas sólidos ou grelhas analíticas sérias dos orientadores, para os filósofos meterem Kant ou outro ao barulho na sua briosa coluna, muito menos para a troca rápida de impressões do cinéfilo que devora por aritmética e não por necessidade. Nem dá para mandar à parede ou às parangonas no programa televisivo onde o artista sofredor desabrocha em apoteose, o arauto do bom gosto impõe o essencial, a efeméride sem sentido vem ao de cima. O especial de um Cannes e sucedâneos nunca anunciarão restauros destes impunemente, nem o programador fashion sedento do “novo” irá com a sua avante, mesas redondas e especializadas não chegarão a lado nenhum. Porque coisas destas, e mais uma vez vou citar o final do texto de João Bénard da Costa sobre o opus de Minnelli, e citarei sempre e pode ser a única coisa que importa para lá de todos os ditos: “estão para além de qualquer lógica e transfiguram tudo o que tocam em oração e oblação. Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.”
 
Para coisas destas importa perder a compostura, a cabeça, a razão. E deve ser preciso até confissões impraticáveis, indecorosas, divagações impróprias, falar da primeira ou do primeiro namorado, na primeira pessoa e em primeiro grau, da embriaguez salvadora. Falar em tomates e em humilhações, tê-los no sítio e ter medo, ir buscar serenatas e a batota na sueca ou noutro jogo baixo. Cantar o largo oceano que um dia se viu, os tais prisioneiros da terra e do mar, que falam com fantasmas e deliram vezes demais. “They Had to See Paris” não pode ser dado numa aula com o risco de se cair no ridículo ou na vergonha, nos risinhos idiotas dos novíssimos e dos radicais de tablet, nem programado numa qualquer Gulbenkian em conjunto com a produtora nec plus ultra da especulação e respectivas Divindades da sapiência, pois em cada imagem, em cada som, cada expressão, cada não dito e esconso, está aquilo de que não se pode falar, ensinar, provar, legislar. Podem-se passar coisas de filigrana, um sentimento ou uma temperatura, claro, e deve-se morrer por isso, e cada vez mais num tempo em que o que interessa são os fogachos do vazio e da vaidade que se exibem numa conferência de imprensa onde se explica o filme e o percurso do autor, onde se entrega de mão beijada as pistas e chaves para a obra-prima, onde o que interessa é a adulação do ego e o máximo de barulho, o instantâneo imortal, a assinatura; e nada a ver com a paixão do que foi Borzage ou, mais perto, Monteiro ou Eastwood, Mozos, ou Gray. “They Had to See Paris” continuará no local devido, sem o rótulo de qualidade nem a mentira do consenso, sem calculismos ou fórmulas canónicas, vivo demais para perfeições dessas, tantas vezes perto da contradição a que está sujeito tudo o que realmente respira, continuará nesse fundo onde só algumas almas acedem, nessa delirante irracionalidade do amor…

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