sábado, 29 de novembro de 2014
“The Missouri Breaks” abre com planos esclarecedores, o que, logo se vai perceber pelas motivações e pela atmosfera geral, completamente opacos. Planícies ondulantes e escarpas afiadas, mas veladas por um lirismo desconhecido, desconsolado, arrastado, destituído de promessas além da dor. Estações chamuscadas onde o enforcamento fica suspenso nas incertezas transitórias. Luz mais dilacerada do que coada, entre o insalubre e o desenxabido. Uma bruteza latente e na superfície, um excesso ao retardador, um organismo singular num corpo próximo da consumição. Entranhas do universo desgraçadas. Mesmo assim talvez Arthur Penn ainda tenha feito um Western, mas o que se passa naquelas bandas sem qualquer tipo de valor seguro vai muito mais além e muito mais ao para trás da codificação do cinema. Visto agora, apresenta-se totalmente liberto dos ganchos do seu tempo, onde as ironias, o cinismo e a poluição advêm dos ideais sujos e corruptos que instalaram (ou desinstalaram) o civismo por oposição à ampla natureza, a lei do mais forte, essa chamada selvajaria das fundações e das conquistas. Mesmo o suposto descontrole e cabotinismo da suprema criação (vislumbre) de Marlon Brando estava à frente da época, e só pode ser visto agora como a figura acabada da aplicação cega e aleatória da multa e da limpeza, tais abutres que escarafuncham os passeios e o íntimo. O conto é simples e até bem alicerçado no arquétipo mais prático, mas a desorientação tudo vacila e inflige às formas e ao mundo um mal-estar que se vai agudizando até à reciclagem. O bando de Jack Nicholson, o seu eclectismo diverso e oposto ao de Hawks, numa fractura e eliminação que a montagem persegue para lá de toda a concisão clássica, trabalhando do mesmo modo que o zoom da lupa de Brando ou dos acordes ribombantes, a câmara colocada ao nível das águas em afogamentos calados ou os desfoques românticos (em suma, todo um experimentalismo liberto e consumado que posteriormente os mtv decidiram caricaturar) só escancara o óbvio – já não há lugar para a comunidade briosa e a junção até à morte. Temos o par e o anseio, ainda temos e sempre teremos, mas é a mulher que quebra o jogo de sedução e se oferece antecipadamente e feiamente, é o supermacho que se esborracha de vergonha, tal como o intolerável da quebra das regras do duelo. Mas pior, qualquer destes casos pode ser reversível de um momento para o outro sem causa, sem razão e sem moral, de onde os homens e as vidas planam sem assentarem, até odes ao niilismo e ritualização do massacre. Penn, mais do que um dos mestres e andarilho pelo transitório, é um poeta do irrecuperável, e o que ele encena aqui tem raízes na violação do éden e expande-se até ao apocalipse. Dito isto, os seus maiores gritos sem raiva, silenciosos, tornar-se-ão cada vez mais agudos, insuportáveis, à medida que a ampulheta esvazia. O humor Shakespeariano que perpassa subtilmente ou cortantemente pela ossatura ri-se de ridículas ambições, do absurdo que não admite que tudo concorre e cavalga para uma fatalidade, então vai-se chacinar o ladrão e a lebre com a mesma crueldade e espectacularidade; de onde o tal bando parece a coisa mais inofensiva (lembremo-nos que é composto por estas personas: Randy Quaid, Frederic Forrest, Harry Dean Stanton, entre outras distinções). O final, o homem para um lado e a mulher para o outro, as promessas desacreditadas, o desamparo frio e o esbatimento até ao negro, são a severidade que só pode apelar ao castigo do mal – mais desamparado ainda do que o olhar final de “Alice's Restaurant”, mais funério do que as funéreas alvas capelas daquele, mais suplicante a que a reviravolta se dê. Penn aprisiona o mal na estética, faz ver e pensar, numa orientação mais clarividente do que pessimista. Daí, só uma nova resolução e um abate sem meias medidas ao irremediável. Um poeta do desejo. Esse desejo que se pode encontrar adormecido ou esquecido no olhar de Nicholson (que parece reunir num só toda a desilusão que acumulou em si no passado, dos percalços de uma carreira arrancada a ferros e dos percursos com Rafelson e Ashby; além disso, um trabalhador obstinado e que ainda traça tangentes ao certo e ao errado, que parece andar na pistolaria e no gamanço pelo arrasto da fossa progressista), casualidade que noutro contexto e hora poderia deixar brotar livremente a semente que o faz brilhar tão fugazmente que quase não se nota, esses sorrisos envergonhados como as tolices de criança com a menina que lhe piscou o olho. Num filme perfeitamente realista, e só por isso ainda liricamente desconhecido, mas que realidade…
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