sábado, 1 de novembro de 2014


"Nada à vista, e a longa, longa duração da vida natural de um homem. Setenta anos a arrastar um corpo obstinado por esse mundo fora e a iludir as suas constantes exigências. Setenta, como na Bíblia. Setenta anos. E ele só tinha vinte e seis. Pouco mais de um terço disso. Bolas." Passagem de "Sartoris" que entra sem meias medidas numa das questões primordiais de Faulkner e que ilumina a soturna ambiguidade do fabuloso "The Long, Hot Summer". A obsessão pelo tempo, pela herança, pela continuidade da raça, a imortalidade. E a longa e penosa caminhada das acções e das decisões que tanto peso adquire no "E ele só tinha vinte e seis". Oposição de sempre que na fustigante duração e respiração da estação do filme se concentra nas figuras de Paul Newman e de Orson Welles, na sua distância e partilha. Confronto e joguete de Deuses a que o olhar colado e penetrante do primeiro e a cólera do segundo traçam a dimensão e as marcas da ambição. Nesse condado concêntrico de clamor de sexo, de predadores soltos e de cheiros inebriantes, animalada em cio, batimento sexuado e assexuado, oferendas proibidas e cruzamentos sanguíneos e genéticos; espaço onde a moral e o código é o do mais forte e obstinado, a aritmética vai cair e a aprendizagem (calejamento, visita da morte, desassombro) vai levar a dizer uma das faces da moeda que deseja viver eternamente em alegria.

"Wanter Man", como diz a música que galga da Califórnia ao ol' Cheyenne. Paul Newman, o último topo de gama da família Quick, sangue na guelra e personalidade meu dito meu feito. Vamo-nos encontrar com ele da maneira como costumam acabar as suas demandas, a fugir. Corre e navega Mississípi adentro e estaciona onde lhe parece bem e virgem. E é chegar, ver e vencer. Orson Welles é o patriarca dos Varner, e não tendo mais dinheiro ou terra para palmar, só pensa na descendência. E aqui entra o vértice fundamental, Joanne Woodward, Clara de graça e aura, que nos seus vinte e poucos anos só pensou em livros, copos de leite, e género másculo que nada mais lhe pode oferecer do que ela já conhece. Entre o torso despido de Quick e o universo em que se fechou, utiliza o desprezo e a dissimulação para apagar fogos que a devoram. De volta desta ocorrência e problemática, todo o pecado e devassidão que atiça catarses e fúrias. E filhos arruinados e lançados às feras como no livro sagrado. Viúvas e viúvos sedentos e já sem o sacramental do juízo. O Povo com um olho no burro e outro no cigano. Lavagem de roupa pestilenta em praça pública. Pecados mortos e soterrados a respirarem incandescentemente. Para o atamento se encontrar na infância. Do Sul não mitificado em museu de cera, pois Ritt consegue casar o génio estético de Minnelli com a aspereza de Rossellini, e basta a sequência do desembarque para queimar manuais, o olhar da confissão ou ida ao fundo do baú do ser acontece quando Quick a Clara se despe sem sacar as vestes. O vagabundo que pegava fogo a palheiros revela-se naturalmente falho e completo na recordação e ressurgimento da figura paterna, centro de tudo isto. Do Sul, dizia, para aquilo que certo dia Agustina-Bessa Luís escreveu sobre um poeta nosso: "Vê-se-lhe nos olhos que obedecem a um prognóstico perigoso, o prognóstico da infância perdida. (...) Ele não pode viver como um homem, não tem lugar no mundo, nem carreira, nem amor para com nada, é um espectro de si próprio, um espelho sem reflexo nenhum. É um Dorian Gray por dentro." E depois de remexido e desempoeirado o cofre, pode começar uma nova história.

Lembro-me de alguém próximo me dizer dizer que só quem pegou em pavimento às costas durante um dia inteiro ou barras pesadas do género poderá perceber a arte (de artesão, doutor da vida) de Martin Ritt. Que é uma arte trabalhosa e simples que se vai erguendo peça a peça, com paciência mas em sentido, sabido e vigilante, até algo se poder dar como acabado satisfatoriamente. É assim aqueles que investem a fundo e sem grandes dúvidas desviantes. Que mantêm a cabeça a funcionar numa missão. Orson Welles e a contenda por um movimento total e impossível. Paul Newman e uma modernidade outra que ferve por dentro. O que apara as lágrimas numa feérie cegante e o que as expõe de modo lancinante. E tal conjugação comporta e cria estes quadros maravilhosos de uma posta em cena que paradoxalmente tantas vezes parece dispensar as palavras, lembrança da poética e do poder de síntese do mudo, quadros líricos e densos, essa pintura das paixões; com o elo estilhaçado que não quebra o peso da unidade mas que antes percorre, semeia, destrói e constrói por dentro. Empreendimento firme como os credos dos maiorais e tremente como a hesitação da juventude, "The Long, Hot Summer" agarra as duas pontas e sustem-se nos eternos retornos e nos ciclos. Para nos deixar com o lar da continuação nossa e da luz ainda rara que vai matar a escuridão. E para voltar ao início: Ritt e os seus comuns apanham e dão a ver a brevidade e flutuação disto tudo e o momento sem tempo, a perfeição. Incomensurável medida.

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