sexta-feira, 8 de maio de 2015



A crueza em "The Beguiled" vem logo do símbolo da companhia que o possibilitou, as estrelas, o globo e o grande vazio cheio de ruído. E corre como sangue ou gangrena para os retratos belicistas da guerra civil americana; imagens fixas mas furadas e perfuradas por uma fúria que faz adivinhar algo, segredos e sombras e peso, que não se deseja adivinhar. A crueza vai-se espalhar, já mais como peste e morte, para a crueldade, e o tempo que se segue vai ser de dualidades, descoloração e envenenamento. Embalo cantado e envenenado. A casa das meninas e mulheres volve-se campo de batalha terminal. Os anjinhos vivificam apenas a parte demoníaca do ser. A seca reclama a tempestade. Ordem, nexo e desejo alteram-se inexoravelmente. Don Siegel, o pai de Clint Eastwood, abandona a linha recta e ousa soltar e calcar os estilhaços e os cacos que tamanha condensação e violação provocou - o vazio sexual e moral desliza para a saturação alva e viciosamente religiosa e tudo se mistura e macula até ossos, tripas, vísceras e perdição se encontrarem.

O resultado é tudo menos límpido e frontal e o que Balzac escreveu há décadas e décadas derreadas continua a valer: "The heart weighs the fall of a fourteen-year-old Empire and the dropping of a woman's glove in the same scales, and the glove is nearly always the heavier of the two." A tortura é muito mais grave nos rostos dissimulados, crípticos e inocentes do que quando se corta uma perna a serrote. Mas na loucura qualquer um cai quando o acaso ou o universo ou o nada conjecturam, e à danação geral o homem sem rumo de Eastwood volta a olhar novamente a virgem como numa madrugada inicial, novos outra vez, perscrutam-se renovados e do escriba francês vai-se ao poeta americano: "No matter how far wrong you've gone, You can always turn around", sussurrou e gritou Gil Scott-Heron antes de ir conhecer a terra da verdade. Dir-se-á que o mal abstracto e que agiu tão concreto se impôs, que os amantes crucificaram e que a tragédia se consumou. Mas quando certos limites se passam e certos bens se abafam... é como se a coisa ou o espectro desse a volta e dali só possa brotar o contrário. E o mais tramado, seco, difícil de engolir, é que a ambiguidade é o cerne da terrível fábula. Para se atingir um vislumbre de verdade não se pode condenar ninguém, todos podem ter as suas razões pois foi o tempo particular que urdiu os sentimentos, colheitas e tempestades - isto sem relativismos de culpa ou cauções filosóficas. Para encontrarmos a passagem dali para fora, só com a nossa luz própria.

Terrível teia e estação em que falta desenvolver tudo. Mas o que continua a impressionar e a suportar todos os alicerces e covas é a mão e o olhar de Siegel. De instinto e sensibilidade afiada, é a sua natureza irrevogável, não se deixa cair ou mumificar em ilustrações do gótico literário ou arquitectónico sulista, assim como tudo problematizou na parte humana. Temos um borrão onde as árvores e as folhagens monstruosas deixam pousar aleatoriamente ou não as suas garras e correntes, os corvos que matam as pombas e largam a má sorte, o glauco térreo e funéreo, o sol tolhido, o ar cortante como facas e difuso como a ameaça, a mansão altiva e temperamental, tradições com derivas e sonambulismos. Mas é assim porque é assim e Siegel arranca a potência visual e lírica da paisagem tal como a arrancou no meio contemporâneo dos seus policiais urbanos. Nada a enfatizar, nada a romantizar, filma directo e sem filtros (sépias sem filtro) pois sabe do que calca e do que prova e não prova. As coisas estão lá, basta colher e trabalhar e rejeitar conforme a pulsão e temperatura, não é preciso dar a ver até à usura e apagamento. Picasso, Pollock, os grandes classicistas que o ensinaram, com certeza uma Carson Mccullers ("The Ballad of the Sad Café" arrancado) e por aí fora. Mas sobretudo seguir o rasto e o rastilho, até ao osso, tripa, víscera. O que é a ter toda a força.

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