quarta-feira, 6 de maio de 2015

(Para efeitos de arquivo deixo aqui um texto que escrevi há uns tempos sobre "O Som da Terra a Tremer" de Rita Azevedo Gomes. Não é só sobre esse filme mas também sobre alguns outros da cineasta. Foi para a primeira edição dos Filmes Proibidos que se realizou no Fundão em 2013. Vale a pena a descoberta da obra. Abraços a todos.)




“O Som da Terra a Tremer” data de 1990 e é a primeira longa-metragem de Rita Azevedo Gomes. Antes disso ela tinha trabalhado com nomes que embora de proveniências distantes e com certeza de sensibilidades diferentes, partilharam a ousadia de um cinema completamente solitário, marginal, complexo. Tenha sido com Manoel de Oliveira ou Werner Schröeter, João César Monteiro ou Luís Noronha da Costa, nos guarda-roupas ou na cenografia, Rita Azevedo Gomes participou numa facção importantíssima daquilo que foi uma ruptura radical com o cinema clássico e mesmo com diversos modernismos das novas vagas surgidas nos anos 60. Para o resumir simplesmente, um cinema que ousou congregar no seu estilhaçado corpo o artifício do teatro, o ritmo da música, a narrativa da luz, a importância, o peso e o poder da palavra. Isto de todo nunca linear, sim oblíquo e camaleónico.  

“O Som da Terra a Tremer” pode ser a história de um escritor assombrado pela sua própria ficção e fantasmagoria ou então um grande vitral ou colagem onde todas as artes que enunciei e muitas mais lá cabem, isto é, uma narrativa mais ou menos linear ferida por elementos oníricos ou uma exposição de obsessões e cumplicidades em clima alucinatório. Uma reflexão sobre a deriva do artista ou o sangue, os encarnados e operatismo de Schröeter vistos pela fixidez e duração de Oliveira.  

Primeiro plano, depois de um genérico de pinceladas e sombreados, para encontrámos o escritor ao trabalho, na sua secretária. Um movimento de câmara para a frente sobre uma janela transporta-nos a mais sombras e reflexos. Fala-se em jardins mas corta-se para um mar imensamente azul em que se começa a pressentir o infinito e o alcance da proposta. “Muitas vezes se passa no mesmo sítio e não se reconhece”, começa por divagar o escritor numa das muitas frases que compõe esta melopeia deambulatória. De seguida o papel e as palavras, e a linearidade descola-se. Sabemos que o escritor está com um livro em mãos, explica-se, e entre “a história de quem não pode viajar…e mesmo assim fica satisfeito” e “O Marinheiro que se satisfaz com a sucessão de dias…o sal, mar, tudo novo a cada dia” está lançada a dimensão da sua busca e da sua divagação.  

A pintura, inequivocamente representada no surgimento de Manuel de Freitas. Que surge suavemente do negro a luzes de fogo de candelabro e se deita no encarnado fulgurante do sofá. Nota-se a tensão, num extraordinário e difuso plano enquadrado entre a superfície de um espelho, quando o escritor pede à ouvinte que lhe explique o livro dele. A História do marinheiro Cipriano. Todas as voltas e reviravoltas num novelo intrincadíssimo que também é Vertigo de abismos Hitchcockianos. 

“Essa como que inconsciência a que gosto de chamar a parte de Deus”. É a primeira vez que se vai escutar esta frase vinda do “Paludes” escrito por André Gide que aqui é condição decisiva. Voltámos ao mar, vemos um marinheiro contra ele filmado, um longo correr da água e uma imobilidade do corpo. Entrámos na ficção do escritor e o escritor encontra as suas próprias personagens. A suposta dimensão do real e a sua oposta começam literalmente a fundir-se ou a ameaçar-se. Isto pela mente de alguém que escreve para agir e de uma construção fílmica que cede aos resvalamentos sem aviso ou anúncio.  

Degrau cedido aos longuíssimos e irreconciliáveis planos do homem deitado no cosmos surdo e branco ao som do Vivaldi – (andamento lento do Concerto nº 10 do op.3 (L´estro Armonico) - que logo têm como resposta a amante ou companheira do escritor sobre o ecrã branco de um projector.

“É preciso compor, o artifício é obrigatório” É a definição produtiva ou a sua tentativa que nos é oferecida pela boca do próprio escriba. Caminho de fé nesta démarche. “O importante é a emoção…”, continua ele, “esta nunca é falsa…o erro vem do juízo”.

Por isso tem toda a lógica que a citação seguinte, num filme de citações como todos os de Rita Azevedo Gomes o são, seja de Leonardo, coisa com intuitos de ordenação do universo: “A pintura é uma poesia muda…e a poesia é uma…uma pintura sem…”. Somos nós que temos de tentar acabar o pensamento e assim entrever uma lógica.

Princípio do mundo e busca da limpidez é o que nos diz o alvo quadro da mão do marinheiro com a maçã contra a água, depois de se afirmar que “Rápido é o tempo, o grande devastador das coisas criadas”. A ficção da ficção e um retrocesso cósmico. 

E a música vai subindo de tom, orquestrando as coisas e os seus tempos. Os desejos vão-se materializando, o vago e etéreo vai-se cimentando. E a terra parece mesmo tremer aquando da descida das escadas de uma nova aparição. A menina encontrada no comboio, descoberta numa luz cegante no momento anterior. E assim a personagem do escritor pensa também ela ter sonhado. Entram planos vagos de aves, vento, areia ou sal, e pensámos em Sophia de Mello Breyner e em toda a pureza redentora. 

Volta-se intercaladamente ao escritor, ao outro lado ou à outra dobra, e este diz que a personagem precisa dele. Sacrifica-se por ele. E então lá do outro lado a aparição faz-se carne. Literalmente, profanamente e justificando o noção e sentido do sublime. Ambos se tocam. Encontram-se. Acariciam-se perto do mar e um livro passa de mãos. A música estremece e a cena fecha em mar cheio. 

Vamos ficando com a menina, que se torna eixo primordial, e entra o acaso e a sua fatalidade. E a cena com João Bénard da Costa que lhe diz que “o acaso é a única coisa que não acontece por acaso” e que entre tantas coisas lhe vai descrevendo um quadro de Van Eick, as suas tintas e inexplicável, a duração de vida de um casal ou o desabrochar de um poeta. E assim todos os vórtices e linhas do emaranhadíssimo novelo que este filme é, são levados a contemplar o seu precipício. Nas palavras de João Bénard da Costa vislumbramos a luz do que lá dentro se passa e do projecto de Rita Azevedo Gomes. Cada coisa é vital, tal como o manto vermelho da virgem de Othon pode ser o quadro todo. Os acasos é preciso percebê-los. 

A partir daí, do Homem ou do Espectro de João Bénard da Costa a pegar no livro dela e a encontrá-lo na sua própria casa e depois encontrar o escritor que o escreveu a si mesmo e à história em que está, todos os níveis misturados. Onde estamos e em que realidade? Em que sonho? Em que volta? 

Música autónoma. Pintura autónoma. Existências autónomas. Como Bach e Mozart e Vivaldi falantes no caos. Como a selvajaria pulsante de Agustina-Bessa Luís a responder ou a casar com os céus chamuscados Mário de Sá Carneiro. Cada cena de “O Som da Terra a Tremer” é um mundo e o filme todo. E o filme todo é a utopia da magnitude que convoca. 

Melopeias ou polifonias ou coro de citações literárias e outras que criam uma estrutura narrativa fragmentada, convulsa; desemboca numa estrutura narrativa própria, com vida orgânica a partir de outras fontes. Coisa una e singular. (ao utilizar palavras dos outros cria as suas própria e as suas formas). Manufactura que irá ser levada ao paroxismo no seguinte “Frágil como o Mundo”, de 2002, em que se tudo deriva do liricismo terminal do verso de Sophia - Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo… - acolhe no seu corpo mais uma vez Agustina, Camões, o que se sabe e o que não se sabe, visto que todo este processo não só agrega como muitas das vezes inventa. Infinitesimais nuances, frases que se apegam e se refazem, se afastam, combinam, fendem e soldam, entram em belicismos produtivos e explosivos, etc. 

Fazendo tudo isso como uma colagem pictórica, um mosaico, capela imperfeita ou barroca ou belissimamente tosca…alcançando desse modo o estatuto de um grande fresco estético…os seus verdes e vermelhos, etc, como os descobrimentos épicos em sintonia com o mais original e originário Amor intimista…transforma-se num quadro que vale também por si. Num quadro ou numa existência ou alma. Assim muito rima este “O Som da Terra a Tremer” com o mais recente “A vingança de uma Mulher”, de 2012, erguido supostamente em coerência com Barbey d''Aurevilly e as suas fêmeas diabólicas, visto que o hiato de vinte anos entre as duas obras cria o espaço para um combate corpo-a-corpo entre a questão velha do teatro e a mais nova do cinema, o irreconciliável e o inevitável, sendo o corpo de Rita Durão e todo o papelão e falso envolvente transgredido ou posto em duelo para uma verdade mais funda e antiga – carne e palavras e matérias em sobressalto, procurando significações seculares. Todo o imaginário romântico, sangrado e decadentista daquele que eu considero de entre todos a sua máxima influência e obsessão, Werner Schröeter, acossado pela pulsão sexual que a isso está inerente, essa ascensão e queda como caminho para o orgasmo e respectiva exaustão, Goethe e Lautréamont no mesmo plano, Santos e Demónios em altar comum sem retórica preferencial, o excesso, o excesso até ao fim e a fruição do efeito.  

Tudo ordenado, dirigido ou animado (aquecido) por uma sinfonia musical feita polifonia, abrindo mais os sentidos e os nexos desta obra de múltiplos caminhos e significados. Como atalhos, pistas secretas e carreiros subterrâneos violando o grande trajecto universal. Ou, se se preferir- e depois de tudo isto é o que eu prefiro – simplicidade e abertura, o que Rita Azevedo Gomes propõe e nisso trabalha afincadamente, é a sua liberdade e desassombro enquanto criadora. Ao mesmo tempo tão fiel inovadora. O que desemboca inevitavelmente no Instinto, tão primordial e inevitável nela como em Agustina-Bessa Luís, coisa felina e inocente entre o leão e a criança pasmada pela descoberta de uma nova maneira de ver e de compor, uma maneira de não saber fazer ou de não querer fazer as coisas como ditam as normas e os profissionalismos. Instinto que jamais se compadece ou confunde com mediocridade, antes coisa uterina que sente o peso do mundo e dita a sua emancipada forma.

“Sei do tempo…da terra…do caminho” é uma das últimas citações. Antes de outro “Possivelmente sonhei…Vem Luciano!”. Seguidamente o mar convulso deixado para trás num plano inverso ao inicial rasga o ecrã.  O escritor e a amante ou simplesmente a mulher encontram-se e desencontram-se. Ela está de véu negro. Bela imagem da hora e meia em que estivemos. Eco para nascenças e finados outros.

E regressámos às sombras e magias de um pequenino teatro que deve ser o do mundo.

Fim.  

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