Fausto, F.W. Murnau, 1926
Da relativamente breve mas infindável carreira de F.W. Murnau, o filme que vamos ver, “Fausto”, realizado ainda na Alemanha e baseado na imortal obra de Johann W. Goethe, será por ventura o seu ponto alto e uma das obras máximas não só da história do cinema como da arte em geral. Da sua imensidão e do corpo a corpo demencial que faz com a escrita e a convocação do universo e da féerie de Goethe, vale a pena constatar o gesto total de um cineasta que tocou em tudo o que no cinema pode ser tocado. Repare-se, para tentativa de concentração e de foco, na cena da aparição de Mephisto: pelas brumas e pela fantasmagoria, na imersão onírica e concreta com que os elementos naturais se misturam com os mágicos, no lado pulsante e na morte envolvente, todos os contrários convergem e se fazem centro numa poesia visual que é a razão primeira do cinema. Tudo ali foi inventado e levado ao limite, como potência mas sobretudo em concreto, e só evidencia as falsas questões com que depois o cinema se debateu para conseguir mais espectadores. Todo o Murnau comporta as três dimensões, a modelação primitiva e moderna, o incomensurável ecrã como as incomensuráveis visões físicas e metafísicas, telas divididas, rapidez estonteante e estancamento, sobreimpressões e efeitos especiais como esses raios, trovões e inclassificável que explode e se contêm conforme a dramaturgia. O cineasta das imagens atinge o limite do autêntico. Uma sinfonia cósmica – Murnau, Goethe, Wagner e Thomas Mann reunidos - onde os únicos temas possíveis que são o bem e o mal – ou seja, o amor e a morte – alcançam uma plenitude e complexidade onde nada se dispensa, nada se teme, tudo faz parte deste mundo e do outro. Obra total.
João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei, Manuel Mozos, 2014
“I always contradict myself” é grito que só pode ser percebido na assustadora dimensão do escuro, pelas tais horas propícias a questões soturnas. “João Bénard da Costa: Outros amarão as coisas que eu amei” é mais uma invenção de Manuel Mozos, sem género e sem amparo, que tanto se aproxima do fantasmático “Ruínas” como dele se desvia por completo em dimensão ao retorno e à matéria. Um todo sem princípio nem fim, de corpo presente. A operação é delicada mas é levada até às últimas consequências, sem remorsos ou suplícios existenciais, e consiste em chamar JBC do outro mundo que ele tantas vezes vislumbrou ou quis entrever para este nosso. Elidir as regras e as fórmulas mortais, deixar circular a morte como único tema possível, assomar o amor como o seu par e a sua superação, para tudo convergir e se fazer uno no único centro inexorável – o tempo. Esse centro que nos cerca, nos devora e nos devolve, como nos diz um ou mais filmes de fidelidade e desassombro que por lá passam e aglutinam irremediavelmente toda a contradição; esse tempo a que nós não perdoámos, escreveu JBC. Mais do que gestação, vida, morte e ressurreição, trata-se de sair dessa imemorial e curta ciência para se entregar à eternidade. E Manuel Mozos, generoso e radical como sempre, mete-se literalmente dentro, até ao fundo, até ao fim da fita que a moviola desenrola organicamente. Em frente às imagens moventes e aos sons transcendentes de meia dúzia de filmes que chegam para tudo, pelas tintas e frescos só à primeira visão fixos de todos os pontos cardeais, nas luzes e nas sombras das palavras e das suas ligações subterrâneas e límpidas, do fulgor de Verdi ao fulgor de Minnelli, em paisagens de moradas e de afectos, Mozos olha o que JBC olhou, colhe, disponibiliza-se, tenta perceber, amar muito do que ele amou. Jamais pose de egocentrismo mas sim de humildade e continuação, ilumina-se pela luz que JBC escolheu para o moldar, ao seu interior e ao seu exterior como nos ditos de Jorge Luis Borges que escutámos, luz essa que nos pode iluminar a nós do outro lado do ecrã para lá da vicissitude e das aparências. Memória, dádiva, vida, será o movimento essencial e o apelo à importância de cada um, de cada ser, de cada herança. Relativização da hierarquia balofa a favor da natureza convulsa, abertura ao que nos ultrapassa ao invés do ridículo da imposição. O sagrado do conhecimento, essa poesia que nos chega de algures ou nenhures de outro tempo, finalmente, a beleza que importa e que aqui inunda. Numa montagem que em infinitas correspondências secretas e consanguinidades ineludíveis liga a tempestade do deserto de Nicholas Ray às ondas da Arrábida, que funde para sempre a Cinemateca Portuguesa aos fantasmas e às carnes de quem nela soube habitar e dar a ver, nunca por nunca estamos à beira da cinefilia barata – essa ordenação da vida por filmes ou essa falta de ambição – mas antes se escava desde os escombros mais sensuais do que funéreos, ou sensuais porque aceite a condição funérea, das latas de película ou dos altares dos mortos até à imensa panorâmica final em que o etéreo e o vazio são preenchidos por Sophia de Melo Breyner, por essa certeza de que os amanhãs permanecerão cantantes. Forma que aceita todas as expressões, conteúdo seguro de si por toda a prova.
Do filme onde Pedro Costa se fecha com o casal composto por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub numa sala de montagem, João Bénard da Costa escreveu: “Eu sei que a interrogação titular do filme de Pedro Costa não pergunta quem escondeu o sorriso, nem pergunta quando é que esse sorriso se ocultou. Mas o quem e o quando parece-me, crescentemente, da maior importância, à medida que revejo o mais claustral e o mais clausural dos filmes de Pedro Costa. No sentido monacal de clausura, pois – foi Camilo quem o escreveu – «isto de viver na clausura não é para todas as compleições».” Claustro e clausura, vale a pena fixarmo-nos nestas ideias, nestes espaços e nestas demandas para se ousar revelar um pouco da dimensão a um tempo moral e material daquele que será o mais veemente filme do seu autor. Veemente e comovente, porque comporta todo o antes e depois do epicentro chamado “No Quarto da Vanda”: a dimensão humana, o empenho absoluto no trabalho, o essencial e o desprezo pelo embuste, o resgate de uma sensibilidade perdida e de um modo de fazer antigo, os ecos longínquos e no presente, luzes e sombras do nosso estado e destino, as convicções e a abertura ao mundo e à sua permanente condição imponderável. Como num claustro, na mais dura e aceite clausura, protegidos pelo amor e pela fé. E assim totalmente sintonizados e ao lado dos homens, da luz, da sua força imemorial e indestrutível. Danièle e Jean-Marie nunca foram bichos-do-mato nem ensaístas frios, perversos e monstruosos, como dizem muitos dos que deles gostam e não gostam. Danièle e Jean-Marie, se sempre foram ao pormenor, ao ínfimo, à opacidade, foi para tirar o máximo de leitura e preservar o essencial segredo, defrontar a morte e apresentar inteira a alvura e a felicidade dos nascimentos. Se Pedro Costa é um dos raríssimos herdeiros deste modo de vida que vem de Griffith e dos inventores, é porque nada trai, nem a natureza, nem o tempo das coisas, jamais a constituição de cada ser único e irrepetível. E assim, como o casal, sua, dá o sangue, mata-se, ressuscita, para que a exígua claridade que ainda nos resta se torne no sol mais cegante e vivificante. A mais preciosa das lições e das dádivas.
Um ano após a famosa revolução dos cravos dada em Portugal, esta junção e espelhamento Frankensteiniano de João César Monteiro não nos fala de mais nada senão do falhanço clamoroso de uma utopia que poderia ter dado certo, ontem como hoje. Por um lado, o cerco imperialista e capitalista que abafa e esmaga por todos os lados, pela terra, pelo ar, no fogo e no coração. Por outro o cerco fundamental, outro tipo de cerco tão perigoso como o anterior que aguentámos por tantas décadas, que é o atentado à liberdade individual e colectiva. Do nosso norte ao nosso sul, do teatro místico aos trabalhadores reais do campo, do comunismo à anarquia, da representação à destruição, de Maria Velho da Costa ao Nosferatu de Murnau, Monteiro usa do arsenal todo para expor do ridículo e nos avisar dos perigos de tamanha inferiorização. A gesta épica com que tudo fecha na esperança de abrir, na mesma medida em que irrompeu Amílcar Cabral ou a prostituta honesta, destapa a mais estupefacta e terrível das equações: depois de tanto heroísmo, tanto mar e tanta conquista, como chegamos a isto? Como caímos em cheio nesta humilhação e cancro de valores? E a tristeza lancinante de se perceber e sentir que este povo unido, com mais garra, um pouco mas de coragem e irresponsabilidade, este povo de tantos valentes poetas e cantores da vida e do sonho, podia, e pode ainda, dar uma guinada no caminho da mentira. E o que aparentaria ser uma construção fílmica datada aparece hoje fresca, afiada e fulminante como os canhões que por ali ameaçavam. E já dispararam, em silêncio, na mais indesejosa e nojenta da paz, esta podre de agora. Que se reveja sempre e que algo aconteça.
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