sábado, 15 de agosto de 2015



"It makes no difference what men think of war, said the judge. War endures. As well ask men what they think of stone. War was always here. Before man was, war waited for him. The ultimate trade awaiting its ultimate practitioner. That is the way it was and will be. That way and not some other way."

Cormac McCarthy, "Blood Meridian"
 


Antes de McCarthy o ter dito já Abraão o tinha provado. E, antes dele, Noé. Antes de Noé, muitos outros. Daqui para a frente, tantos mais. Essa caminhada para uma terra da verdade, ou só para uma qualquer terra, prometida ou sacada, onde a paz consiga momentaneamente embalar a guerra. Um terrífico filme realizado por André De Toth na quentura de 1944 Depois de Cristo, crucificado "None Shall Escape", mostra, de frente e nas voltas que a câmara não deixa escapar, como o mal pode preceder qualquer formação ou contexto, escondido nos escombros do animal para se soltar no momento propício. Nem a paixão pela mulher, a criança desarmada ou a beleza natural tiveram qualquer chance de se imporem ao homem que descobriu no nazismo a sua forma de desenvolvimento e expressão, o modo de ser fiel e de praticar o seu bem. No princípio como no fim, a mesma convicção, pulsão, acossamento, unindo-se as pontas. De Toth, forçando o impossível e a reescrita, ainda ousou meter a lente colada ao chão e às flores, com juventude limpa e apaixonada em volta; ainda recuperou o menino manipulado pela besta e captou grandes-planos de sorrisos indestrutíveis, mas, infelizmente, o lirismo casou com o horror, nada procedeu e a sentença final do condenado ficou mais uma vez a saber que a nossa justiça nada pode contra a ontologia ou os fundos dos fundos da matéria e do resto de que somos feitos. Uma menina morta levada em procissão e o respectivo altar ficou como a imagem mais inesquecível, tristemente.

Michael Cimino, no abraço que recentemente o festival de Locarno lhe deu, falou na doença imemorial da guerra, como todas são iguais, sem tempo nem lugar diferenciador, sem medida de valor, importância ou sofisticação. A guerra sempre esteve connosco, antes de nós, esperta, à espera, nos descampados ou nos escritórios. Cimino, raivoso, magoado, humilhado, mas em pé, vivo e esclarecido como só poucos o conseguiram, deixou escorrer lágrimas pois já não aguenta essa doença aplicada aos jovens pelos velhos. Generoso, de coração nas mãos, clamou pelos ombros das Mães e pelos gestos da paixão, a criança e a inocência. Desassombrado, não encontrou esperanças a não ser mostrar à chacina uma chacina superior, a luta de cada um com ela, sendo mais duro do que ela - foi o conselho que deu à jovem que pulou a cerca e que lhe perguntou como lutar contra tanta agressividade, tanto ego, competição, sangue derramado. Muito duro e muito frágil, sem certezas e cheio de garra, sem querer ser padre, professor ou evangelista, apenas conversar um pouco, mandou-nos ir à guerra da felicidade. Sem choradinho, com o impacto do pior instrumento bélico. Foi o melhor filme que vi este ano, com todos os sonhos guardados.

"Thunder Bay", Anthony Mann, em 1953. Mas a guerra de que regressam James Stewart e Dan Duryea é a mesma do filme de De Toth. Um pouco selvagens e vagabundos, misturando honestidade e propensão para a charlatanice, não têm no seu historial momentos que os façam recomendáveis. Chegam a uma pequena terra com ela já fisgada, em busca do danado ouro negro, e a perene invenção e desenterro que os homens possuem para o conflito vem logo ao de cima. Ainda no outro dia um amigo me disse que no cinema clássico Americano as coisas só começam a correr realmente bem quando já não podem correr pior. Então, os dois forasteiros, arranjam um poderoso aliado que se lembra de quando foi um zé-ninguém que acreditou em qualquer coisa, e em coisas ditas impossíveis. De um lado, os prospectores que querem o avanço das coisas, do outro a população local que prefere contentar-se com a pesca. Toda a tragédia em génese e evolução. Só que Mann, sabe-se, sempre furou e cavou até lugares e razões dúbias, negras, caladas, e então não construiu um libelo progressista nem o seu contrário, mas antes uma complexa arena de questões onde ninguém está abrigado ou confortável. O sonho de Stewart é ultrapassar-se, ultrapassar a lógica, fazer vir ao de cima algo que se formou de coisas mortas, sepultadas, jorrando orgásticamente para safar o presente e auxiliar o futuro - e assim unir os tempos, diz o Stewart que não dorme e se apaixonou por uma mulher marcadíssima. O sonho dos pescadores é manterem-se unidos, não levantarem ondas, terem o seu para o dia-a-dia, afastar o mal que veio de fora. Nada a fazer, e depois de alguns mortos e feridos, estala mais uma guerra. Os pobres, mar fora, para destruírem os capitalistas - a composição das embarcações no palco é igual a Cristóvão Colombo ou aos conquistadores do Novo Mundo, à visão de Pocahontas, aos piratas e ao desembarque na Normandia. Só que o petróleo que tudo desencadeou tudo vai salvar, jorra mesmo e na festa e união aparente não há milagre algum. O milagre dá-se na boleia com que Mann nos dá o The End. A perpetuação perpetua-se. A imensa força víscera desta empreitada - a um tempo orgânica, animal e mineral - espalha-se das veias e da morfologia daqueles seres em tensão até aos enquadramentos, à profundidade, movimento e sucessão de planos. Cada plano é obviamente um filme, o conjunto é a nossa história. E fica-se mais uma vez a saber da indomabilidade e imprevisibilidade do todo. Para lá ou cá das culpas, penitências e julgamentos fáceis.

Sem comentários: