sexta-feira, 7 de agosto de 2015

"Pylon" é uma das grandes obras de William Faulkner, tecida numa aparente linearidade que é a cada instante estilhaçada precisamente pelo presente atropelado, pelo "agora" que consome cada um daqueles seres sem passado nem horizonte. Tal como uma tecedeira que sutura tecido injuntável e sabe a causa impronunciável de tal, quem o trajou e o que nele fez, como rasgou e o que secou. Passados e horizontes em corpo presente e exposto, sendo a memória uma memória do presente, transformando-se os longínquos mosaicos e o compósito Faulknariano em parede ou ecrã reflector concentracionário, cegante. A epifania do jornalista que se espanta ao descobrir mentes e carnes sobre as quais não é possível resumir como manda a regra da profissão só pode ser aguentada no álcool, esse purgatório dos muito honestos. Mentes e carnes frias, mecânicas, conservadas e a trabalhar nos óleos e pelos combustíveis que nos permitiram ganhar asas, entrever o derradeiro abismo e a imortalidade. Veias de aço, ossos como inquebráveis tubos, sentimentos objectivos, electricidade e instinto. Órbitas avessas que olham para dentro do próprio crânio. A fome e o sexo e a dor em circuito programado. Sem união para lá da união desconhecida permitida à tecnologia. Vida e morte fundidas e carentes de importância como no sono profundo e sem despertador. É disto que o jornalista cadavérico que se parece com um espantalho dá de cabeça quando pensava que de tudo já tinha visto e rasurado. A corrida dele com os limites e a justiça, a poesia e o ininteligível, vai arder e enlaçar no fogo dos pilotos, dos para-quedistas, das esposas petrificadas e desses mecânicos que só parecem realmente existir nos breves segundos onde no céu procuram a meta como quem por Deus grita. Não é curiosidade mórbida ou antropologia oportunista o que faz mover o homem das letras em direcção aos super-homens suicidas, antes algo da ordem, visceralmente, do puramente humano, isto é, tocar uma sensibilidade que de tão aflorada e antiga corre o risco de ser percebida e cristalizada em altares patológicos. Todos eles, e o jornalista alcançando-os, são especiais pois não se prenderam ao suposto e no seu tudo ou nada clamam o absoluto, nada menos, bilhete para os nossos sanatórios terrenos. A prosa de Faulkner alinha-se para rebentar numa violência de realismo inacreditável que assim é pela nossa imemorial tendência de amarrar o fácil e o óbvio, e pinta-se num gótico que é tão lancinante e complexo e inaugural como escravaturas e bíblias. A peça final para o jornal ou para nada que nos é dada a cheirar, a descarnada e a polida, vinda do céu e do lixo e do whiskey, manda o cosmos putrefacto da perpetuação do dia-a-dia manipulado para o inferno engomado. “A integridade de uma pessoa encontrar-se-á sempre naquilo que não consegue fazer? Penso que, em geral, sim, porque o livre-arbítrio não significa um só arbítrio, mas vários, que se confrontam no mesmo indivíduo. A liberdade não pode ser concebida simples. É um mistério, um mistério que a um romance, mesmo um romance cómico, apenas pode ser pedido que aprofunde” , isto é o que Flannery O'Connor pergunta e responde no prefácio da segunda edição do seu “Wise Blood”, e que se torna verdade simples e geométrica da tragédia de “Pylon”.




"The Tarnished Angels", visão e sangue fervente de Douglas Sirk, tem dentro uma das mais belas personagens de todo o cinema e de toda a vida, Burke Devlin, o jornalista, aqui nada cadavérico e tão lúcido como o de Faulkner, comoventíssimo e estóico Rock Hudson familiar de todos os dissidentes com causa, cheio do som e da fúria e da raiva e coração dos que já não admitem a lenta e porca burocracia do adormecimento imposto, alguém que não hipoteca a casa para agarrar sucessos mas que simplesmente a oferece a quem precisa, desligado da posse e da carreira. Perdido que se acha nessa perdição fatal, inscrita na sua têmpera, patrão ou alma de todos os seres abandonados e sem lugar, numa reza cósmica e rumorejante, sem lei nem aprovação política. Talvez a pele e os órgãos desgalgados e estripados de Faulkner se tinjam aqui de romantismo secreto, velado em amor puro para lá dos altos, vindo num vento que urge amarrar antes que se esfume para todo o sempre. Como é que um herói de guerra intempestivo, uma mulher estonteante como os anjos da terra, um miúdo atormentado e um mecânico fiel demais à desregra se contentam com circos, feiras e humilhações? Parece ser tudo isto e o segredo deles o que começa por interessar Burke. Assim, suspende a bebedeira crónica para tentar, sempre tentar e talvez nunca alcançar, ver o brilho inaudito que só na mácula reflecte e se esconde revelado. O grande carnaval que no livro se aproxima do deboche, em Sirk, e apesar da horrenda troca sugerida para o piloto conseguir a nova máquina, gira e rói em terrenos e sussurros da solidão, unindo bem e mal e tudo na liberdade e no desejo sem margem para dúvidas do estômago queimante. Burke tem com a pára-quedista aparecida Dorothy Malone igualmente a mais bela das paixões, concretizando-se nos olhares e nos dentros da alma, até ao fundo - irmandade e Mulher, ídolo e carnação. O rodopio e a entrega de Burke, o genial discurso sobre a fascinação do homem pela superação e pelos sonhos superiores, máquina de precisões e comoções, as mãos vazias, a música da infância - pela câmara de Sirk, o espaço agiganta-se para o mínimo e o íntimo sobressaírem, infindável scope para invisíveis fluidos e calores, onde no mundo pós-apocalipse são necessárias novas e letais emoções, mundo assim que concorre para todos os tempos em que a veracidade é lei, utopia suprema a agarrar como o tal vento. R. W. Fassbinder amou o filme e falou a propósito do medo que todos têm, esse desamparo, fragilidade, mesmo sacrifício. Medo que não nasce das dúvidas do modo de vida mas de certeza da possibilidade (sempre a maquinar) de se inserirem na intolerável máquina outra e de travões bem menos afiados e rasteiros, a máquina da realidadezinha fabricada, cobarde e mascarada que marca e engaveta por cartão de identidade e demais papelada como se marca o pobre gado. “Tomorrow? I'll probably be drunk” é o que o tão belo de olhos raiados das lágrimas da verdade esfaqueia a quem lhe manda fazer amanhã o que ele pode fazer hoje. Se só existisse o ontem não havia aflições, disse Faulkner certo dia. E é aqui a medida de todas as coisas. Como a ferida a respirar.


“ - Porque devem eles matar? Porque é necessário matar? Cyrus estava profundamente comovido e falou como nunca tinha falado. - Não sei. Estudei as coisas e talvez saiba o que elas são, mas estou muito longe de saber porque são. E não deves esperar encontrar pessoas que te compreendam o que fazem. Tantos actos são instintivos: a abelha fabrica o mel e a raposa caminha no riacho para enganar os cães. A raposa não sabe porque age desse modo, e qual a abelha que se lembra do inverno e prevê que ele há de voltar?”
“A Leste do Paraíso”, John Steinbeck




Uma das mais complexas, soturnas, sinfónicas e progressivamente luminosas criações que vi e ouvi nos últimos anos chama-se "True Detective" - que importa se é a chamada série para televisão, uma curta-metragem de dois minutos ou um vídeo arrancado em telemóvel por alguém que não pôde deixar de o fazer sob consequência de paralisar, alguém que descobriu uma refracção inédita, uma poética, duração, narrativa, desconhecido... quem diz o contrário é o mais rasca, inútil e medricas dos moralistas, e, como diz a personagem de Rust Cohle nessa criação - Matthew McConaughey, o mais bestial (de besta mesmo, e portanto com as ténues dádivas conservadas) dos actores - quem dá conselhos fala para si próprio - onde o passado e as acorcovadas questões da criação e da existência e da evolução se unem para assombrar cada passo, cada relação, certeza, credo ou filosofia. Nada ganha resposta - o espaço, o tempo, os eternos retornos, ciclos, Deus, o nada. Cúmulo de uma construção em que o meio orgânico e indomável que nos acolhe - do demónio à florestação - embate com o racional e o humano para um envolvimento de impossível separação; a técnica e ontologia cinematográfica (como diria televisiva ou amadora) nasce e corre por dentro, de onde tudo está certo, por isso belo e terrível, sem uma nota em falso que não a privilegiada a tudo o que existe. Se o citado Faulkner ou Nathaniel Hawthorne presenciassem tal, de certeza quereriam filmar, juntar a imagem e o eco, o que se vê e o que se escuta com o que se pensa ver e se pensa escutar, mais o que transcende a ideia feita e a imaginação; esquecer e convergir na elipse, condensar universos na presença e na respiração antes ou depois das palavras – espelhar e materializar a abstracção e a monstruosidade fantasmática nelas latente. Rust Cohle, Burke Devine, tão opostos, tão semelhantes, ali onde os extremos não só se tocam mas antes de tudo se encontram. Rust, que não quer acreditar nem amar, apenas ser testemunha do embuste e da destruição, sacrifica-se pela terra toda, em alcance também ele imulatório. Ou seja, mais um anjo, maculado e imaculado pelo mais belo acto de continuar, erguendo e destruindo, para a frente. “Por isso não desfalecemos; e ainda que o nosso homem exterior se vá consumindo, o interior, contudo, renova-se dia-a-dia.” lê-se nos Coríntios. Tal é levado não a radicalismos cósmicos mas a necessidades dessas, o combustível da resistência e do avanço, via-crúcis dos honestos e amantes calados. Um dos mais belos, e tão sofrente ou não, personagens que nos falaram. Quando a noite avança, o seu colega possuído por Woody Harrelson, tão em pé como na alvorada, passadas as intempestivas provações, une-se a Rust, já sem evasivas. E a dimensão de ventura que perpassou todo o curso é desmitificada, a metafísica extingue-se, a substância revela-se - no final só há de haver um tempo e um espaço, aglutinados pelo amor. Ficam e ficamos para lá das estrelas, na mais eterna das batalhas, a luz furando na escuridão, a escuridão a precisar da luz, sem barreiras.

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