sábado, 5 de setembro de 2015



Para alguns, certas obras haveriam de arder nas caldeiras cegas do inferno que só fazia bem à sanidade humana. Mas certo é que qualquer retrato preciso e imbuído nas superfícies e nas teias do que trata só pode ser indispensável. "Woman on the Run", da leva tardia dos noirs e dirigido pelo vivido Norman Foster, chegou efectivamente a pegar fogo nalgumas dessas chamas. Só que certos homens sabidos - no caso, Eddie Muller - deixaram os receios de lado e foram até ao fim para salvar algo que só mostra homens e mulheres na procura de qualquer coisa próxima à salvação, a lutarem contra a força da natureza de cada um, de onde a patologia ou o trauma é rótulo redutor. O resumo é simples: o tipo que passeava o cão à noite calhou de ver e ouvir o que não devia e passa a ser a presa acossada. Para se tornar irresumível: quem o quis logo despachar confundiu-o com a sombra, matou a sombra, daí, o tal tipo tem de volver-se sombra a negro sangrada. Seguidamente, no tempo em que a luz presta as contas a quem de direito, vamos saber da esposa dele, da relação estranha, conturbada e aflorada; saberemos ainda que ele não precisou do tal evento extraordinário que lançou a narrativa e o cinema pois sempre foi um perdido no mundo cósmico e no mundo dos adultos. A mulher vai correndo e envolvendo-se com o que deve e não deve, o fugitivo vai deixando pistas soturnas e esventradas como cartas de amor, o turbilhão faz-se ciclónico e apocalíptico. Tudo desemboca numa feira popular, pela montanha russa e entre deformações, palhaços, ventríloquos e monstros outros que não espreitam de lado algum a não ser das entranhas negras da nossa inconsciência e medo, por aí onde ainda não se nasceu ou morreu, num sono profundo ou grito de desespero mudo pelas esquinas da via láctea consumida. Então, no auge paroxístico da imagem e do movimento aflitivo do desespero da consumição, esse homem e essa mulher encontram-se - para além ou aquém do reencontro - e pode ser que se trate de um nascimento. Agrura, crueza, realismo sem corrente, distorção sem Orson Welles, paixão sem freios numa modelação trabalhada pelo ar da noite. O milagre que foi ter-se achado este filme tem a ver com radiografias claras e oblações íntimas, o que nos é dado a entender e o que se tem de resguardar sacramente. O que importa.

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