sábado, 24 de outubro de 2015


Em "Rio Conchos" Gordon Douglas utiliza-se subtilmente (nunca pretendendo ganhar ou bater-se sequer com o colosso natural) das gruas analíticas de funda observação de Delmer Daves e potentemente das fundações e construção granítica de Budd Boeticher, para numa caminhada rumo a uma suposta paz no final da guerra civil americana, bons e maus, oficiais e dissidentes, sangue reconhecido e amaldiçoado, reverterem todos os pressupostos, livros de história ou carimbos, transcendendo assim este filme já de 1964, quando o western já tinha fixado o seu núcleo e mito, a um libelo ímpar pela complexidade e carácter singular de cada constituição; de cada um desses homens e da mulher, dos vales, das árvores, rochas, rios e escarpas a unirem o céu. Entre o comandante vacilante que quer subir de posto e um derrotado que perdeu a família toda e só cheira e fala com a morte, a questão da palavra e do olhar nos olhos vai ser fundamental, e aos motivos pessoais e animais vão-se impor, conhecendo o próximo e vendo o que não se deve ver, os motivos comuns, logo revolucionários. Quando os reinícios das guerras estão prontos e a vileza acordou e se acordou, quem viu de cima e de dentro, das gruas e da rocha, vai perceber que urge outro reinício, daí a explosão cósmica que promete outro estado e outra união além bandeira - o sargento e a pele vermelha, finalmente belos seres em conjugação com o animal ferido do fabuloso Richard Boone, e do negro. O mexicano que os tinha acompanhado, ludibriante Anthony Franciosa, afundou-se nos trilhos e desejos ínvios, mas os gestos e a forma como Douglas o protegeu, lembrando Nick Ray a proteger Dancin' Kid e irmãos, também lhe dá razões; como a outros peões num tabuleiro que os suga. O quadro final: desolação, quente e frio, sismos e cercos, caos e condensação, desesperança e o regresso. Círculo detonado, cogumelo, outra vez zero, que alcança e perfaz temporalmente e infinitamente com os círculos apocalípticos de "Acto da Primavera" do Manoel de Oliveira e "The Thing" de John Carpenter - no deserto, no gelo ou em chão sagrado, tudo desemboca no e para o mesmo, descarnando-se as entranhas da categoria ficcional ou efabulatória para se apurarem naquilo que somente foram - puros documentos da estirpe que aí habita. Em boa verdade, uma cantilena do mundo e uma janela aberta. Largo resumo, estado, semente.


1968 e cada vez parece pior. "The Detective" destapa a cortina com um plano estranho, invertido, onde a cidade assoma reflectida no que parece ser um charco pútrido e mal cheiroso; a câmara treme, desarranjada, nada elegante, e só depois se tenta recompor e recompor o panorama, mas não é nada convincente. O segundo plano, parece que não, que já está melhor, mas é tão estranho como, ou mais; o centro é ocupado pelo farol de um carro, corta o protagonista pela cabeça, desenquadra e desequilibra todas as regras e linhas e moral. Frank Sinatra, o detective, entra na esquadra, sabe das novas e dos mortos, conhece o novo comparsa que lhe agradece poder trabalhar com o melhor da cidade, e ele, a estrela, ri-se. Ri-se, e é sobretudo isso que o vai tramar. Não tarda, começa a bater nos seus colegas, a querer saber o que não se deve, acende luzes que deveriam estar apagadas para sempre, tenta aliviar a fossa em esgotos impraticáveis. Ou seja, faz as coisas bem e por isso está obviamente errado. E corre mesmo mal, é trágico. No fim, como no princípio que nada augurou de bom, devolve o distintivo e todas as consagrações pois também ele foi engolido, participou do cheiro putrefacto, duvida que esteve realmente limpo na postura e no ego, ou começa a questionar se isso é possível. Mas nós vimos, tivemos a oportunidade de perscrutar o seu olhar, uma chama do seu interior, e sabemos que ele acreditou - por isso Gordon Douglas tanto fixou a câmara nele, contemplativo. Nele e na fabulosa e desfabulosa de tão dorida Lee Remick, apaixonado ainda - a mais magoada das mulheres, sempre menina, incapaz de não o ser - que por causa de também não saber enganar se vai dar mal. Se estamos imersos numa cruzada à Otto Preminger, nos terrenos de Don Siegel mas também do implacável e generosíssimo Sidney Lumet, se conhecemos bem estes meandros da nossa Guarda Nacional ou de alguns abutres contíguos que em vez de protegerem as pessoas as humilham, o essencial e a ferida vai para o lado intimista desses dois que se perderam de amores quando já tudo tinham esquecido, e talvez o centro seja mesmo Remick, completamente desarmada, ainda mais do que com Elia Kazan. Deu-se mal até conhecer Sinatra, e vai continuar a dar-se assim, vai continuar a não conseguir crescer, dizendo sempre ao que vem. Pode ser que depois de o filme ter acabado eles sejam felizes para sempre, finalmente, largando ele a sua profissão que o devora todo junto com o Whisky, entregando-se ela ao único Homem que a fez Mulher. Mas até ali foi trágico e triste pois deu-se o encontro de dois seres sinceros demais, expostos demais, que preferem matar-se rapidamente pelo que pensam ao invés da morte lenta e penosa e nojenta da dissimulação necessária aos tais adultos reconhecidos. O mundo, a sociedade, as políticas, as pessoas, estão tão habituadas a que só se entregue um bocadinho da verdade para limpar almas e consciências, um bocadinho de elixir que lave o fedor só um instante, que não admitem o gesto completo - duas pessoas, o par, os amantes, absolutamente nus, eles, questão de carácter e sangue, é escrupulosamente escandaloso e proibido. No mundo, nos jornais e telejornais, discursos e plateias, só admitem meias-verdades, admitem um par em que um é bom e outro mau: Sinatra e Remick estão perdidos. Finalmente, os dois fundem-se ainda com os tantos fatalistas que habitam e se consomem por esse chão magnético, gente que não se domina, gente sugada e irresponsável, sempre a dizer da boca para fora a sua impossibilidade e sendo isso, assim dolorosamente, a prova do seu brio. Menos por menos fizeram dar mais e a equação cientifica é prova de facto. Rezemos para que depois de sermos largados do filme tudo se resolva bem, revolucionariamente. E que o tal arco-íris que tudo abrange e mascara e salva o mal, possa conhecer um pouco de apocalipse. Sinatra a desabafar que a psicologia ajusta os frágeis a um mundo patológico... Quanto à outra mulher, também meio escangalhada e a pedir salvação, Jacqueline Bisset aparição, bastava mais um milésimo de segundo de fixação da alma, e acontecia entre eles, mas Sinatra seguiu em frente. O último plano é um homem em direcção às luzes da cidade, atirando-se ao desconhecido, calmo e sem travões. Rezemos por ele.

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