terça-feira, 13 de outubro de 2015


Há alguns homens neste mundo... que nasceram para fazer todo o trabalho desagradável. É o trabalho do fundamental Atticus Finch, pelo fundamental Gregory Peck, no mais belo e árduo dos contos de fadas tecidos por Robert Mulligan. E esse trabalho não é sobretudo a defesa de um negro inocente no Sul dos Estados Unidos da América vencido, decadente, ruinoso. Então, a luz que cai e plana no espaço é translúcida, a veludo, quase mágica. Os movimentos da câmara precisos, atentos, serenos. E os seres e as coisas surgem animados pelo seu fogo e pela sua natureza singular; mas nítidos para que se vejam realmente como deve ser. É dessa matéria o seu som e a sua fúria.

O trabalho desagradável tem a ver com os conselhos que Atticus - que nome... que alcance... - nunca impregna nos filhos, preferindo sentar-se com eles no banco das futuras recordações lunares e contar-lhes do que soube, do que viu, o que trilhou. Tem a ver com o fazer companhia ao negro na porta da prisão, dispensando tudo o resto e acatando o relento, para além da mera defesa; assim como passará a noite inteira, estacado, de graça, ao lado do filho ferido e com outro no colo. Pela manhã, estará lá. Ficou. Assim como permitiu, na elevação e na tomada de posição mais dura e fácil de todas aquelas estações, que a cotovia continuasse a dar-nos música também de mãos desinteressadas. A cotovia que velada, escondida, sentinela generosa e violenta, saiu do casulo na hora grave e deu vida. Raridade que pode ser cada qual, em cada lado, a qualquer altura. Uma simplicidade e uma inteireza que só assim não é regra porque se foi preferindo não escutar o coração, o único juiz necessário.

Poesia, melodia, oração, justiça, conto de fadas. Quando ciclicamente nos esquecermos - na sala de estar, numa esquina dos encontros, num parlamento - que a essência está no interior, nos sentimentos, na união, e não no poder exterior a todo o custo e sujidade, esta obra central - porque redimensiona tudo, focaliza tudo, repõe tudo - voltará a meter-nos no devido lugar. "To Kill a Mockingbird", do momento e da posteridade, assim se chama. Com varinha mágica e estômago, de ternura e de aço.

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