Se
neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, um filme
como “Hitori musuko”, “O Filho Único” na nossa língua, um
dia haveria de acertar as contas com ele, ajustando todos os atritos,
voltando a um princípio claro, cheio das oportunidades e da afinação
que certa vez nos concederam. A beleza de Yasujiro Ozu sempre foi a
beleza inequívoca da passagem, chegando-se lentamente e normalmente
do novo ao velho, do arcaico ao moderno, do nascimento à morte; e do
dia à noite, aqui literalmente pelo milagre da exposição e da
fusão da película. Passagem agarrada no seu pleno, numa construção
indestrutível que revira inclusive os pressupostos e a cronologia.
Mas nesta caminhada da Mãe que sacrificou a vida toda para dar o
melhor ao seu filho, chega-se ainda a outro patamar de passagem.
Sacrifício que pretendeu a honra, a posição social, o bem-estar
financeiro, mas que pelo acaso e pelo fundo que passa de sangue para
sangue, de espírito para espírito qualquer, se volveu dignidade. Na
aldeia velhinha era a tecelagem e os sonhos fora dela; na Capital
nova esse compasso mecânico e o seco desengano. Da aldeia sai-se
para se ser maior; a Capital espeta cada um no seu devido lugar e
altura. O professor que largou a sua terra para evoluir e acabou na
evolução a vender carne frita. E a Mãe que redescobriu o filho por
quem se esfolou já com mulher e um filho também, mas de cabeça
baixa, paralisado nas contas da consciência. Onde as elipses são
toda a história possível deles e de nós marcada na face e na alma.
Se neste mundo a justiça fosse plena, assim como a lógica, as
lágrimas e as palavras da Mãe sobre a importância de continuarmos
de pé e de construirmos o nosso trono valeriam para todos e cada
qual, ajustando a ganância e o arrivismo, ruído abjecto que
humilhou o canto iniciático. E o silêncio final, porventura
terminal, desencanto volvido encanto, luz singela da satisfação
plena da naturalidade, teria a força dos conquistadores primitivos,
dos projécteis lunares. Como o teorema do quadro do professor pobre
que só lá pode estar para reequilibrar as crianças e nos
reequilibrar sabidos. Naturalmente.
“Creed”,
oferecido por Sylvester Stallone a Ryan Coogler tal como há milhões
de anos lhe tinham dado a única oportunidade, larga-nos obviamente
na escadaria monumental que urge subir, para vermos toda a vida e
toda a terra, dois seres fundidos contra a violência da prometida
solidão, eternamente. Daqui a mais alguns milhões de anos,
continuarão lá, o velho acabado e doente abraçado à estrela do
momento mais ofuscante, sem distinções e salvando cada queda mal
dada. Rocky Balboa é uma Mãe doce de Ozu, um obstinado puro de
Frank Capra e um Hawksiano firme como um cepo. Pode dizer-se Mãe
dura como um cepo de Ozu, um puro de Hawks, e um doce de Capra. Pode
continuar-se a inverter as combinações e tudo dará tão certo como
o dito teorema. Chegando-se à conclusão de que a arte e a moral de
Stallone nunca foi a do romantismo mas antes a do trabalho, da
realidade bruta, disciplina como na guerra ou no xadrez, sem
comiseração. Essa dedicação bela que retira a carga negativa ao
sacrifício. Mais perto dos pequenos clubes desportivos do fundo da
tabela que vão fazer o brilharete ao campo dos tubarões do que das
metáforas testamentais. Stallone vai à prisão ver o miúdo que ele
mesmo foi há uns dias e promete não se matar vivificando o seu
duplo. O miúdo perde e ganha as noites no hospital que é um lugar
como os outros. Stallone sussurrou-lhe do tempo, o único adversário
invicto, que importa agarrar na essência; isso é, vai-se
compreendendo na demanda do conto, misturar os humanos uns com os
outros, no suor e nos abraços, na carne e na experiência, sempre a
aprender e a passar, unos, principiantes, consumados. A Mãe, Sly, o
puto de Ozu ou de “Creed”, nas rezas ou nas noites perdidas das
questões impronunciáveis, na aflição ou no momento do condão de
fada, de certeza comungam com Robert Musil em "O homem sem
qualidades”: «Deprecio pessoas que não seguem a expressão de
Nietzsche: “passar fome na alma, por amor à verdade”; os que
recuam, fracassam, os moles que se consolam com doces palavras sobre
a alma, e a alimentam com sentimentos religiosos, filosóficos e
poéticos que são como pãezinhos desmanchados no leite, por
recearem que a razão lhes dê pedras em vez de pão.»
1936,
América das oportunidades, 2016 ou o Japão expectante, a limpar o
chão ou a tentar caçar galinhas, com o título mundial na palma da
Mão ou prometendo ao bebé que dorme – movimentos embrenhados,
encontrados e passados algures no tempo e no espaço que nos envolve,
de onde a fatalidade se ajusta também. Em pleno, olhando o
desenrolar e o encontro. Um passo... um soco... um round... os eixos
partidos do nosso pedaço a recomporem-se. Doridos e felizes.
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