sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016


Cinematograficamente belo é o primeiro quadro do genial “Barry Lyndon”, atmosfera indefinível onde a presença de espírito alguma vez experimentada ou simplesmente pressentida faz sentido; ou uma aurora de David Wark Griffith, o acordar do mundo em consonância com o espanto de um novo olhar impresso na nova película. Mas também a entrega e a perdição e a garra de Robert Kramer nas suas viagens aos confins de tudo, rumo a pessoas. Mas um pouco ao lado das esferas cósmicas, ou precisamente envolto nelas, uma mulher a unir-se a um homem, ou um homem a unir-se a uma mulher, por crerem sem ver o mais secreto da sua existência, é do mais belo que o tão desconhecido universo e o tão desconhecido cinema pode oferecer.

“Three Days of the Condor” é uma narrativa de espionagem, de ar do tempo e futurologia, mas é também, ou acima de tudo, um esplendor estético simples, desses sem qualidade demarcada ou controlada; essa aceitação sentimental de dois seres que se aceitam só pelo olhar e pela temperatura e tremor de um corpo ascende à categoria indizível das emoções. Evidentemente que no prólogo há armas, ameaças, altercações, mas nunca olhares mentirosos sobre o fundamental. Robert Redford é um peão num jogo que ultrapassa os comuns e no momento de aflição recorre ao acaso. E vira-se para Faye Dunaway, a fotógrafa que escolhe os meses incaracterizáveis de Novembro para mesmo assim esvaziar a paisagem, deixando só os aros de suporte de todas as coisas. Redford, ao vê-las e ao elogiá-las, vê-a a ela e elogia o seu recôndito.

Mas o tempo e o cerco ao mundo continua a girar e Redford sai para a luta. Volta a casa e redescobre que só nesse ser que tem algo magoado nas expressões básicas pode confiar. Tinha-a prendido, mas ela solta diz-lhe que não tem de a amarrar mais à força. Depois brota o inadjectivável e o patético da paixão, aqui reforçado pelo insólito do tal acaso - falam das coisas que só se mostram aos muito íntimos, do que só se deve contar a um, do inseparável. E a noite do amor chega tão de rompante como o encontro deles, misturando-se os corpos com os segredos, o desejo com a libertação, o fixo com o movente, o fugaz com o pleno, de onde a morte fica parte relativa.

E aquilo que poderia ser um beco da humanidade e do poder feio como o grão surgido nas emulsões que quer espreitar torna-se belo por esse sol que se decidiu a brilhar no buraco longínquo. Vai entrar no filme obrigatoriamente o ritmo da acção e o laboratório do argumento, a calibragem no gume da faca e o jogo de espelhos e reflexos; mas no centro dos massacres e dos desesperos globais, aquelas duas criaturas escondidas vão brilhar em resgate – a despedida na estação de comboios típica das despedidas é a possibilidade de salvação global pela entrega sem freios. O desenlace garante da imprevisibilidade absoluta, estacando o filme no realismo necessário, mas a luz de Frank Borzage já tinha eliminado pelo menos uma grande porção de sujidade.

“Infortunadamente, a culpa não é nossa, mas sim da nossa fragilidade, / porque assim somos, tal como fomos criados!” escreveu Shakespeare em “A Duodécima noite”. A propósito de um filme de Sydney Pollack que nem é dos mais representativos do seu tempo só expõe da irresponsabilidade do par central que passa todo o tempo a velar-se de tudo e de quase todos, na treva presente. Irresponsabilidade, aquilo que Redford também desejou para o suposto mecanismo perfeito da Nossa organização. E que ele pelo medo mas sobretudo no ápice do sentimento decidiu enfrentar. “Three Days of the Condor” é um filme muito belo, pois no ápice do degredo ainda se ousa o amor, trocando-se o suicidário pelo sublime singelo.

* Ver, se ainda possível, na versão não-remasterizada, essa original onde nada foi limpo para efeitos datados. Os escuros sem medo de se escurecerem; o grão pulsante, fervente, esventrado ou sossegado, nunca amansado; as sombras como os brilhos e as almas, tacteantes.

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