A montagem paralela que vai fluindo
irresponsável na abertura de um dos Robert Mulligans da safra de
1978, o implacável e cheio de dúvidas “Bloodbrothers”, só
parece celebrar a vida, dizer às pessoas presas no tédio e no
cagufe do quotidiano que a aproveitem sem consequências ou
julgamentos. Ou seja, essa correria dos pais ainda mais malucos do
que os filhos, os eternos engates sem idade nem condição, as
zaragatas mútuas ou os conselhos sem exemplo, fazem parte do utópico
fogo da liberdade que a noite pode oferecer a alguns. Só que pela
manhã, nesse lar agridoce, as brincadeiras furiosas e os excessos
são ainda a tentativa de promulgação do ontem, muito sentimento
que soa excessivo, muito barulho que parece querer iludir uma dor; da
casa para o mundo, um passeio de domingo prometido e o chefe de
família anuncia que comprou o terreno para o eterno descanso,
fazendo disso a coisa mais normal do dia, descansando-se já sobre o
piso, todos menos as mulheres aflitas que suportam os desequilíbrios
e pressentem a tal agudeza calada, tudo ainda a fremir do espírito
da noite que aqueles homens prolongam para o dia que se quer
composto.
Curioso que Mulligan comece e acabe o
filme com planos aéreos, ampliando vários caminhos, encruzilhadas,
possibilidades, mistérios, mas também o dia e a noite,
respectivamente. O que se passa durante toda a metragem cá nos
baixos já foi mil vezes visto, revisto e contado, por isso mesmo só
pela intensidade dos fabulosos e doridos actores se pode acreditar
mais uma vez, ver o futuro, perceber e pegar nas pontas soltas e nos
nós intrincados, focar mais nitidamente o déjà vu, aproximar o
mapa, fazer alguma coisa com a oferenda - “Bloodbrothers” é um
emplacar de enquadramentos estremecentes. E recordar o início para
se admitir que tudo poderia coexistir de outra forma, a noite com o
dia, o excesso com a seriedade, que não se era menos honesto.
A narrativa de Richard Gere, o filho na
hora da decisão grave do modo de vida oficial e do semblante a
manter, encontra-se emparedada entre a inocência do seu amor pelas
crianças, os bares manhosos aonde ainda não perdeu essa inocência
(vive em terreno ordinário e no brilho magnífico das estrelas, hora
onde a noite encontra o dia lá pela madrugada, a sua relação com a
lindíssima ruiva) e a questão – que alguns poderão chamar honra
– de seguir o emprego dos pais e continuar o legado - «um homem
que não gosta do que faz não é nada nem tem respeito por si
próprio» diz-lhe o progenitor que parece o amigo mais louco. E
aqui já estamos perto de John Fante e da ferida do american dream
(remake de “The Brotherhood of the Grape” e talvez de “1933 Was
a Bad Year”), pois temos toda esta cisão e o bifurcar a
mata-cavalos, mas o realizador, como o escritor, não tomam partido –
a cena em que Gere conta aos miúdos o conto dos irmãos de sangue é
tão bela e tão terna como a chegada à construção civil e a
experiência da vida de trolha prometida ao pai. E essa é a poética
e a moral com que tudo se reveste, as coisas boas ou as coisas más
não têm rótulo nem são estanques, dependem sempre do momento, da
pressão do tempo ou do sangue – assim a realização, silenciosa
ou de orquestração esfuziante, de olhar impassível ou puramente
funcional, conforme a incontestabilidade do presente.
Richard
Gere vê nos mais velhos o futuro e no seu irmão tão novo as
promessas, assim como os adultos praguejam, cometem e recordam os
mesmos erros que os novos mas ainda estendem a mão no momento em que
gritam, como no final em que o pai insulta e protege, bate e
incentiva. Ínvios são todos os caminhos e tudo é questão de
intensidade e de entrega à vida – mais uma vez e sempre o paraíso
apócrifo inicial e iniciático – e o final é tão incerto como
generoso, não menos seria de esperar do coração de Mulligan. Filme
corrido entre bares e lavandarias, quartos e hospitais, nada de
extraordinário aconteceu, todos já passamos por coisas iguais ou
idênticas ou já escutamos parecido; alguma coisa realmente
aconteceu e vai mudar pois o filho viu coisas com os olhos bem
abertos e o espírito totalmente disponível, rasgado, do mesmo modo
que qualquer espectador teve oportunidade para fazer do mesmo. E mais
uma vez uma obra tão simples e que muitos podem considerar tão naif
e básica se pode tornar revolucionária. Questão de entrega, nada
menos do que perder os medos imemoriais, nada menos do que a
definição pura de humanismo.