quinta-feira, 2 de novembro de 2017

"Le soldatesse", Valerio Zurlini , 1965


O pior pode não ser matar ou destruir, pois os homens morrem mas também nascem, as cidades podem ser reconstruídas, e a vida não acaba pela violência. O único imperdoável, mesmo com as escrituras na mão e os credos no peito, chega com a humilhação. A juventude torna-se velha. Os próximos, irmão, ente queridos ou amantes deixam de se poder olhar olhos nos olhos. Todas as coisas que os antigos passaram aos novos podem cair por terra. Gentileza... dignidade... o respeito pelos fracos... a bondade... tudo na lama da humilhação terrena. O inaceitável. Assim fecha “Le soldatesse” de um Valerio Zurlini plenamente comprometido com a humanidade de cada situação e de cada ser e nunca pondo qualquer dramaturgia ou efeito de cinema a valer por ele mesmo - uma panorâmica logo consumida em fogo imbatível ou a frontalidade possante que augura uma eternidade também ela humilhada. O sublime dos sentimentos e das emoções a transcenderem todos aqueles espaços e toda a pressão da jornada, até ao poema final onde nuvens, escuridões e plenitude tudo fundem.

Tal como “Westward the Women” do ziguezagueante guerreiro William A. Wellman ou o recente “The Homesman” do clássico e dançante Tommy Lee Jones, urge transportar mulheres em território perigoso, mas as perenes tensões e desejos entre elas e os homens misturam-se com a guerra que a raça leva a todos os lados. Em Wellman a rocha bravia e as setas do velho oeste americano, em Lee Jones o mesmo e o ouro a brilhar ainda mais cegantemente, em Zurlini uma guerra mundial, o berço da civilização e a beleza original e indizível, outra vez um território ocupado por alheios, a esfinge feiticeira de Anna Karina e uma muda ainda mais indecifrável. E soldados que escolheriam a malária ao medo, parábolas sobre a fome no deserto e sobre a fome causada pela irremediável dor que teimamos em renovar, prostitutas angélicas e anjos queimados, sexo consumado e amor eterno em olhares, sonhos justiceiros e risos desculpáveis dos vinte anos.
 
Por entre cidades dos mortos e cemitérios clandestinos filmados e montados com o peso e a funcionalidade efémera do indesculpável e cigarros trocados com olhares e timidez infantil envolta pela luz do mais luminoso cinema italiano (Karina e Milian na combustão do amor numa cena tão bela como a dos fumos entrelaçados e do prometido enlace entre Eleonora Rossi Drago e Jean-Louis Trintignant no etéreo de “Estate violenta”), Zurlini força uma retaguarda intransponível mesmo que sem perdão às invasões e genocídios rasteiros demais; sentinela que deseja e chega ao aceitamento da ausência de tempo e da união dos espaços – para lá do físico, da morte, da distância, da separação, das leis e dos matrimónios demasiado burocráticos: a certeza de um outro lado, e como se redime quem já não está presente?, como as lições inapagáveis dos antigos. E tudo isto só foi possível e se acredita pois Zurlini olhou e tudo ligou com a sensibilidade da justeza, que é a do coração em alerta, a bater em todas as latitudes e com todas as intensidades, patrulhando cada palmo, certezas e temores lado a lado. Sem a mentira ou o pedestal do estilo. A pureza proibida.

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