Em 1968 Robert Mulligan já andava a
convocar a lua para presidir a certas irresoluções humanas. “The
Man in the Moon”, fogacho de despedida puro, dorido e aconchegante,
sussurrava sobre as dores invisíveis de crescimento, do encanto e da
marca Sulista, de Elvis, da magia transformadora de olhar na direcção
do firmamento e aguentar as pálpebras e o medo desconhecido sem
desvios; projéctil completamente inaudito nos hip-hops e nos speeds
dos anos 90 que em gesto de fascínio intergaláctico recuperava a
humanidade e a inocência prestes a serem devoradas pelo golpe da
globalização em voga. “The Stalking Moon” anda pelos terrenos e
por algumas formas do Western, mas muito longe das suas convenções.
Abre com a ferida do nascimento da nação em causa, acarreta as
vinganças e os tormentos, o sangue ruim e o traçado, e fazer uma
viagem longa demais já envolve vários bilhetes, carruagens,
comboios, tranfers e escalas. Até ao final essa ferida imemorial, da
barriga da nação, e a vingança sua filha, cobrirão a narrativa e
a pintura com a sua têmpera e a sua índole, uma peste fora de
radar, mas o centro e a razão desta fábula é a Casa.
Logo depois do momento grave em que o
soldado retirado de Gregory Peck pondera até ao fim dos seus dias e
convida a alva e loira Eva Marie Saint a ir viver para a sua quinta
juntamente com o rapazinho procurado, todas as chacinas que circundam
o momento fulcral da chegada a casa são as agruras do merecimento,
as justificações de uma paz, as incompreensíveis irresoluções
humanas que tanto pasmam a lua. Toda a banda-sonora mete em jogo
essas oposições de maneira sumptuosa e clara, os metais crispados e
a pedirem sangue como ferro fundido contra um corpo desnudado em
plena tortura estarão constantemente a ser silenciados pelos
sininhos, xilofones, vidros translúcidos, aves do riacho do paraíso
e magia natalícia do dentro. No fim, os sentimentos de cada um de
nós irão decidir o vencedor. A chegada desse trio que clama família
e a será ou não será como José, Maria e Jesus de certa época é
um momento perfeito que tem lá dentro todos os aniversários,
mortes, Páscoas, ressurreições, nascimentos, o casamento ou o
derradeiro exame escolar; casa encantada, lar doce lar, com a
suavidade do olhar cândido e terno de Mulligan que sabe que tais
perfeições e ousadias cobram o bilhete mais longo e mais duro, ou a
visão mais desfocada, à imagem do primeiro dos planos de dentro
para fora da casa, puro quadro abstracto ou impressionismo sôfrego,
embrião em formação com os malditos dos metais à espreita do
aborto. Continuação: a câmara de Mulligan continua a fluir
suavemente, Peck chega da primeira ronda que antecede o sono
conciliador, e a visão é ainda mais absoluta e original, com o fogo
da lareira para derreter o que houver para derreter, a luz amarela
para resistir ao negro da noite, o chamamento caseiro. Lá dentro,
comida feita e prato na mesa, o resto são ainda conquistas e lições
paternas, astúcia e gesto secreto maternal, a casmurrice infantil.
Peck, tal como Mulligan, devolveu todos
os agradecimentos e atenções, e ainda os liberta mais, pedindo-lhes
para correrem soltos, conquistarem vales e ganharem montanhas em
busca de todo o horizonte, bruscamente ressurgindo Heidi e seus
pares. Eles acedem, a magia espalha-se, flutua, meninos e meninice na
terra dos sonhos adiada. Mas, sempre o mas destes contos, como
existem leis e fronteiras, físicas e espirituais, tanto nos livros
como nas raças, nos homens selvagens como nos intelectuais, o
próximo plano já contém escarpas, nevoeiros, trovoadas, ausência
do céu e a casa ameaçada. E é nesse espaço belo e mítico
transformado em impiedosa arena que as sombras e os fantasmas, as
heranças e o mal adulterado lutarão contra a maior das promessas,
tentando-se salvar do calvário o possível para uma nova primavera.
O ladrão entra no castelo conquistado e urge resgatar a luz sacra. A
lua roubada a perfurar o opaco e a velar por todos nós. Como a tal
câmara e os restantes recursos de cineasta deste humanista lúcido e
parcial que vai sempre mais um bocadinho além da reza. Que por vezes
força a barra para arrancar do inferno a semente da caminhada. Ainda
outro género de melodrama que não se contenta com os signos e a
estética cristalizada. Como a história de amor e o amor efectivado
que valeu todas as consumações gráficas desse encostar de cabeça
de Marie Saint a Peck no decurso dos agradecimentos e dos carinhos
sussurrados, ou do póquer aceite pela nova criança. Mulligam é
outro tipo de amor ténue e revolucionário. No espaço supremo, o
radicalismo supremo.
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