sexta-feira, 24 de novembro de 2017

"The Stalking Moon", Robert Mulligan, 1968


Em 1968 Robert Mulligan já andava a convocar a lua para presidir a certas irresoluções humanas. “The Man in the Moon”, fogacho de despedida puro, dorido e aconchegante, sussurrava sobre as dores invisíveis de crescimento, do encanto e da marca Sulista, de Elvis, da magia transformadora de olhar na direcção do firmamento e aguentar as pálpebras e o medo desconhecido sem desvios; projéctil completamente inaudito nos hip-hops e nos speeds dos anos 90 que em gesto de fascínio intergaláctico recuperava a humanidade e a inocência prestes a serem devoradas pelo golpe da globalização em voga. “The Stalking Moon” anda pelos terrenos e por algumas formas do Western, mas muito longe das suas convenções. Abre com a ferida do nascimento da nação em causa, acarreta as vinganças e os tormentos, o sangue ruim e o traçado, e fazer uma viagem longa demais já envolve vários bilhetes, carruagens, comboios, tranfers e escalas. Até ao final essa ferida imemorial, da barriga da nação, e a vingança sua filha, cobrirão a narrativa e a pintura com a sua têmpera e a sua índole, uma peste fora de radar, mas o centro e a razão desta fábula é a Casa.

Logo depois do momento grave em que o soldado retirado de Gregory Peck pondera até ao fim dos seus dias e convida a alva e loira Eva Marie Saint a ir viver para a sua quinta juntamente com o rapazinho procurado, todas as chacinas que circundam o momento fulcral da chegada a casa são as agruras do merecimento, as justificações de uma paz, as incompreensíveis irresoluções humanas que tanto pasmam a lua. Toda a banda-sonora mete em jogo essas oposições de maneira sumptuosa e clara, os metais crispados e a pedirem sangue como ferro fundido contra um corpo desnudado em plena tortura estarão constantemente a ser silenciados pelos sininhos, xilofones, vidros translúcidos, aves do riacho do paraíso e magia natalícia do dentro. No fim, os sentimentos de cada um de nós irão decidir o vencedor. A chegada desse trio que clama família e a será ou não será como José, Maria e Jesus de certa época é um momento perfeito que tem lá dentro todos os aniversários, mortes, Páscoas, ressurreições, nascimentos, o casamento ou o derradeiro exame escolar; casa encantada, lar doce lar, com a suavidade do olhar cândido e terno de Mulligan que sabe que tais perfeições e ousadias cobram o bilhete mais longo e mais duro, ou a visão mais desfocada, à imagem do primeiro dos planos de dentro para fora da casa, puro quadro abstracto ou impressionismo sôfrego, embrião em formação com os malditos dos metais à espreita do aborto. Continuação: a câmara de Mulligan continua a fluir suavemente, Peck chega da primeira ronda que antecede o sono conciliador, e a visão é ainda mais absoluta e original, com o fogo da lareira para derreter o que houver para derreter, a luz amarela para resistir ao negro da noite, o chamamento caseiro. Lá dentro, comida feita e prato na mesa, o resto são ainda conquistas e lições paternas, astúcia e gesto secreto maternal, a casmurrice infantil.

Peck, tal como Mulligan, devolveu todos os agradecimentos e atenções, e ainda os liberta mais, pedindo-lhes para correrem soltos, conquistarem vales e ganharem montanhas em busca de todo o horizonte, bruscamente ressurgindo Heidi e seus pares. Eles acedem, a magia espalha-se, flutua, meninos e meninice na terra dos sonhos adiada. Mas, sempre o mas destes contos, como existem leis e fronteiras, físicas e espirituais, tanto nos livros como nas raças, nos homens selvagens como nos intelectuais, o próximo plano já contém escarpas, nevoeiros, trovoadas, ausência do céu e a casa ameaçada. E é nesse espaço belo e mítico transformado em impiedosa arena que as sombras e os fantasmas, as heranças e o mal adulterado lutarão contra a maior das promessas, tentando-se salvar do calvário o possível para uma nova primavera. O ladrão entra no castelo conquistado e urge resgatar a luz sacra. A lua roubada a perfurar o opaco e a velar por todos nós. Como a tal câmara e os restantes recursos de cineasta deste humanista lúcido e parcial que vai sempre mais um bocadinho além da reza. Que por vezes força a barra para arrancar do inferno a semente da caminhada. Ainda outro género de melodrama que não se contenta com os signos e a estética cristalizada. Como a história de amor e o amor efectivado que valeu todas as consumações gráficas desse encostar de cabeça de Marie Saint a Peck no decurso dos agradecimentos e dos carinhos sussurrados, ou do póquer aceite pela nova criança. Mulligam é outro tipo de amor ténue e revolucionário. No espaço supremo, o radicalismo supremo.

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