quinta-feira, 27 de dezembro de 2018



Lawman, Michael Winner, 1971


Michael Winner paira nos dicionários de cinema e nas bocas de muitos cinéfilos sérios como um sinónimo acabado de fancaria, foleiragem, violência gratuita. Mas bastava ter captado o rosto sereno de quem tudo viu unido aos modos profissionais de Charles Bronson nesse “The Mechanic” que a televisão portuguesa passava na sessão da meia-noite ainda em meados dos anos noventa para poder ser toda outra coisa. Toda outra consciência e outro tempo que estão sublimados e putrificados em “Lawman” de 1971, onde a justiça parecia um eco e uma quimera longínqua pronta a despedaçar cada um dos seus apóstolos. Aí vamos encontrar uma cidade, um sistema, um universo que tal como o Donald Trump de hoje entrega armas a crianças, a professores, a cobardes, a dementes, para cada um por si. Numa velha história que começa com mortes gratuitas, inconscientes, impunes, e que acaba com a massa comunitárias de bacocos e de surdos a voltar à rotina para tudo esquecer e recomeçar num breve próximo episódio.
 
Tempo onde os cowboys se mistificam a si mesmos justificando a brincadeira com as armas que deveriam somente servir para matarem cobras e ajudar no seu trabalho. Coboiadas sem rei, nem lei, nem roque, prontas a tirar o pão da mesa a uma família ou a terminar um brilho nos olhos e todas as promessas just for fun. “Lawman” tem o seu tempo presente no apocalipse, que desde a bíblia representa o nosso alcance. Onde as flores nascem apenas passados os limites da terra queimada da polis suprema e mesmo assim brotando de cactos. Paisagem paramentada por abutres, bicharia negra e coiotes que comem as tripas dos belos cavalos que certo dia foram os confidentes e parceiros dos homens bons. «Coração que tens e sofre / longas ausências mortais. / Viúvas de vivos mortos / que ninguém consolará», como na estrofe final da Canção da Emigração de Rosalia de Castro para a voz lacrimante de Adriano Correia de Oliveira – emigração suprema.

Em “Lawman” vamos encontrar três homens diferentes, que se conhecem e reconhecem, vergados pela cruz do inescrutável e das mortes a esmo, pela cruz do novo, da falta de sentido e de ordem, que se respeitam mutuamente. Burt Lancaster, ou Madd, Lincolneano até morrer de pé, é a estrela da lei, de brilho decadente, rápido como Jesse James, tudo menos herói, que aguentou o suplício que o mito dos mitos rejeitou suicidário, velho, no boca a boca do Correio da Manhã da época, sem piedade, widowmaker, todo esfarrapado, mas mesmo assim o único que não se vende e quer impor a justiça, tendo trocado por essa guitarra o amor, o pedaço de terra, os filhos. Lee J. Cobb, o fabuloso Lee J. Cobb, Bronson, o big boss, também supremamente cansado, sempre a olhar para o chão, para as lápides e para um horizonte que para sempre conservará o rasto do que foi, cheio de filhos reais e ficcionados, cheio de ver mortos, remoído de remorsos pelas mortes da lotaria e pelo massacre dos índios, que considera boa gente, não quer mais duelos mas mesmo assim não trava o sangue na guelra dos novos. Robert Ryan, Ryan, o mais solitário de entre os mil solitários do cinema, olhos plangentes, xerife boneco, marioneta, empty uniform, que um dia foi como Burt mas que não teve as forças dele para lutar contra a maré, aproveitando sem pedir a coragem de Burt ainda intacta mil anos depois para se ressuscitar. E, no centro do vértice e do vórtice, Sheree North, a mulher, única entidade capaz de meter por breves momentos em elipse e fora de eixos a responsabilidade e vigilância dos grandes sobre os néscios.

O duelo final mata mais filhos, pais, testemunhas, credos, e das costas viradas e caídas com toneladas de peso do homem das leis a câmara vai andar às aranhas até focar às marionetas urdidas pelo acaso, pelo medo e pela fascinação da violência, depois de mais um zoom à cara da Mulher desfeita, pondo em evidência a terra seca e a infertilidade vindouras. Michael Winner usou e abusou da distância focal comida e carcomida velozmente, do espaço e do tempo comprimidos, esmagados e distorcidos, da fixidez demasiado próxima para objectividades lúcidas, de um lirismo gangrenado fora do catálogo do Belo, das metáforas demasiado materiais e descarnadas para instrumentalização política. Dizendo-nos das fronteiras de hoje, das fronteiras vitais, precedentes, da má consciência, dos holocaustos em loop. E mostrando-nos no tal zoom derradeiro a última saída antes do apagão. “Lawman” é um dos elos perdidos, ou um pistão quebrado, entre John Ford, Sam Peckinpah e Michael Cimino.
 
 
Chato's Land, Michael Winner, 1972
 
As razões sobre as quais Winner resolveu voltar ao western tão pouco depois de “Lawman” podem ser várias, estranhas e indecifráveis, para lá das oficiais, visto que puxa o tempo e o terreno para trás, dir-se-ia à cata da génese de tal selvajaria e impunidade em que os anos sessenta e setenta do século passados estavam a ser prósperos, pegando em temas tão antigos como a ancestralidade das práticas e a justiça comum e tão novos como a guerra que os Estados Unidos estavam a travar no Vietname por alturas de “Chato's Land”. Chato, o mestiço silencioso de Bronson é apenas uma máquina de reacção que defende o seu e que conhece o terreno que pisa como as palmas das suas mãos, porque são as suas posses e o seu amor, solo e espírito sagrados que o adversário só começará a compreender quando começar a enlouquecer. Chato é um Vietnamita e um simples patriarca bíblico. Como no “Anatahan” de Josef von Sternberg os homens aprenderão através daquele que pensam ser o seu inimigo que o máximo inimigo e o máximo horror estão dentro de cada um deles.
 
Pois o que despoletou a guerra foi a cena da vergonha em que um da nossa raça tenta expulsar um ser humano de um local público por ele ser nativo daquela terra, e numa cena feia como há poucas no cinema, o agitador olha para a câmara e para cada um que vê o filme e pergunta: estão do lado deste filho da mãe ou do meu? A partir desse momento cabem todos os tempos e mundos, das tensões entre brancos e negros na Brooklyn de Spike Lee até ao imemorial USA x México, antecipando-se mais uma vez Trump na personagem que trata abaixo de cão o Mexicano que ajuda o grupo liderado por Jack Palance a dar caça a Chato. E esse Capt. Quincey Whitmore de Palance é uma das personagens mais complexas e básicas dessa época, filosofando sobre a derrota sulista de uma forma simplista e tecendo sobre os índios as mais elaboradas filosofias, desde as suas tácticas de guerra até à verdade da sua palavra - desprezando o que viveu e estudando o que não entende, para mesmo depois de tanto ter visto preferir a loucura.
 
O ritual Faulknariano que Quincey mete em marcha ao saber da sua missão, mecânico e coloquial, citando “Absalom, Absalom!” na cena da arca de todo o legado e de todo o sangue, essa alegria a um tempo e no mesmo tempo a consciência da tragédia, é a fundação dessa nação, a justiça férrea, a violência férrea, e um sonho algures, todos em em combate, num pé de guerra. O resto do filme é uma milimétrica resolução dessa equação, já com os abutres a devorar a carne dos mortos para que não sobre rasto mas apenas lenda, já com as violações à mulher do outro. Michael Winner decidiu rebobinar mais um pouco o pergaminho, não encontrou solução, e o raio de esperança jaz fundo, algures no términos (?) da caminhada abraâmica que Chato e a sua família irá encetar.
 
(No caso de “Chato's Land” escrevo sobre a versão uncut, a chamada montagem europeia, muito menos soft do que a lançada na América; filmado na Andaluzia, sul de Espanha, que passa pelo estado do Novo México; tal como, incrivelmente, “Lawman” foi filmado no México.)
 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018


Urban Cowboy, James Bridges, 1980

O John Travolta de “Urban Cowboy” não sonha ser cowboy como o miúdo de “The Culpepper Cattle Co.”, ele é cowboy. A cidade a que ele chega vindo da sua vilória é a gigantesca Houston, mas só a vamos ver de longe e no alto. Ficaremos nós e eles trancados em rulotes e no bar da noite de todas as possibilidades.  Quem sonha aqui com a velha anomalia ambulante a passear trajado de ganga e com o típico chapéu de abas nas encruzilhadas do betão dos arranha-céus são as mulheres. É esta fascinação que lança o drama do casal Bud / Sissy que obviamente se ama mas que troca de par devido às mesmas razões que qualquer outro casal possa ter no lado mais afastado e estranho do mundo, e isto é tudo o que há a dizer das voltas e reviravoltas da narrativa.

Fora o mito, que despoleta e laça o desejo, o ciúme, a eterna costela infantil, o crime. E ainda o irracional e animalesco inexplicável que nos acordará algures, ainda o mito. Na cena mais bela do filme, porque a mais trágica, e a mais sincera, o old fellow seu tio diz ao vaquero sem sombra para dúvidas nem necessidade de mascarilha, que a única saída para os da sua laia, cepa dura mas cravados pelos sonhos como o gado com o fogo, os sonhos de domar e dominar os animais selvagens como os avôs Texanos, animais agora máquinas aberrantes sem pradarias à vista, sonhos de bebés e de velhos, é elidir o raio do orgulho, um dos pecados mortais.

E lá mais ainda dos altos, muito acima do concreto e do brilho do vidro de aço, o céu ameaçador e revolto que estava a meter tudo em polvorosa nas cenas anteriores, perfura sem dó nem piedade quem ousou abrir a boca de verdade no momento grave. Foram talvez anjos a escrever algumas coisas direitas e a apontar caminhos por linhas e vias tortas, e a sua música não será a sublime das harpas mas obviamente a country que embala aquelas dinastias cruzadas e aquele incomensurável palanque, dos Eagles a The Charlie Daniels Band, o embalo desse mitológico berço que confunde e difere o realismo. É toda a genuína Hollywood naquelas danças, nessa sinfonia de vozes do deserto, de whisky e de violinos de cordas estraçalhadas, sociologias e etnografias em rotação, de rude, prosaico e destemido movimento que fundou uma arte infalível e de renovada emoção a cada salto para o comum, para a vida e poética de cada dia – muita musiquinha, muita luz e muita acção, mas o poder e a lógica são irmãos do silêncio de Robert Bresson ou da tensão de Yasugiro Ozu. Fieis a D. W. Griffith e a Howard Hawks, pode-se reinventar tudo:

- o primeiro plano de despedida na casa: a mesa familiar, a panorâmica para baixo nas escadas,  o filho a deixar o cosmos quente do quarto e a largada para o caos lá fora.


- no acidente de Bud, montado em paralelo com a traição sem sexo de Sissy, ele é um Cristo invertido na cruz – regresso ao eterno James Dean sacrificial, passado Jesse James – e ela a utopia da igualdade, escondida com o selvagem e a máquina, profecia milenar.

-  na primeira das traições sexuais sem mácula, travessura de recreio, o cross dissolve entre o verme da garrafa e o sexo por si de Bud.

O derradeiro Plot Point antes do Clímax típico e da Resolução feliz ou é uma facilidade tonta de argumentista ou as tripas de fora de uma menina rica iludida com as histórias de quadradinhos que usou todo o seu arsenal bélico na causa: cabe a cada espectador escolher o que viu e no que quer acreditar, se espectáculo barato, se Shakespeare entre bostas de cavalos e poços de petróleo. É isto a sinceridade de um cinema sempre a consolidar o laconismo, a prática, o andar para a frente pois para trás mija a burra, a teia puramente humana, seja em mil nove e oitenta ou com Bem Affleck à câmara.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018



The Culpepper Cattle Co., Dick Richards, 1972


Jerry Bruckheimer, glorificado e massacrado ao longo das décadas pelos grandes blockbusters de Michael Bay ou da longa saga “Pirates of the Caribbean” que ajudou a gestar, estreou-se na produção em 1972, numa associação ao grande realizador de segunda unidade do cinema clássico, Paul Helmick, homem da confiança absoluta de Howard Hawks e que filmou planos e sequências de “Rio Bravo” ou de “Hatari!”, num pequeno e complexo western que para muitos funcionaria somente como isco para aproveitar a fama do jovem Gary Grimes, fresco do triunfo conseguido no “Summer of '42” do ano anterior.

Só que Dick Richards, realizador de punho firme que três anos depois seria tão duro como Raymond Chandler e Robert Mitchum nessa adaptação carnosa de “Farewell, My Lovely”, logo de início decidiu tratar de mais um bloco da odisseia da expansão americana como deve ser, vendo com dignidade e sem desviar o olhar as gentes que estiveram nesse fluxo, num genérico onde a frontalidade e ternura do grande fotógrafo e testemunha Walker Evans é posta em prática sem devaneios, estabelecendo imediatamente um ponto de vista moral e prático – logo de seguida vão desfilar pelos planos-sequência os modos de trabalho e de artesania dos vaqueiros, desde o desbaste de uma cana verde, passando pelo marcar a fogo a carne viva dos animais, até ao modo como se prepara a comida para a trupe esfomeada, entre a mais variada alvenaria; assim como serão picados grandes-planos de uma subida para o cavalo, o laçar das cordas, a disposição correcta da sela, o controle do corno do cepilho, etc., para mais uma contribuição preciosa no incomensurável atlas da nação Hollywoodiana.

“The Culpepper Cattle Co.” segue Grimes a par e passo como um  Huckleberry Finn fascinado pela vida de cowboy e logo pelas armas, fascinado pelo mito primordial; mito diferido, pois já num tempo posterior ao de “Blood Meridian” de Cormac McCarthy, no qual se declarava sobre um menino que não sabia ler nem escrever que nele medrava já o gosto pela violência tresloucada. Neste menino a psique já foi invadida por motores, pré-fabricado, matérias gasosas, químicas e orgânicas incompreendidas, para um sangue e uma combustão adulteradas, injectando no ritmo fílmico um langor anestesiante que faz com que os corpos caiam à maneira de Sam Peckimpah, numa câmara lenta sem estilo e com o sangue e o rasgar da pele perto da objectiva. Nova idade aparentemente escondida do centro dos planos que vai assombrando tudo pela calada da noite. Passado o tempo das grandes crenças e dos grandes embustes, aguenta-se somente e em bolandas a lenda em segundo grau e a anedota inflamante, nesses mitómanos de trazer por casa junto à lareira sob as estrelas do deserto que elaboram sobre bordéis e sobre o ordinário onde outrora se elaborava sobre grandes conquistas e heróis.

Tempo estranho e indefinido, a meio caminho, nem músculos nem reza, tempo de passagem, o suor a debater-se com o cerebral, em paisagens desorientadas nessa quebra dos raccords de realização clássicos que iludem os pontos cardeais, a simples nascença de um novo mundo no oriente e o cair da treva no poente, paisagem na qual a vinheta que narra o tiro e a morte que transformou a criança em adulto, o ajudante de cozinheiro em pistoleiro oficial, não procede. Nesta odisseia oblíqua, ao deus-dará, sem o Oeste no rumo da ida ou da volta certa, os ladrões e assassinos notórios preferem conduzir vacas temporariamente (como os trabalhos temporários e os precários de hoje) a terem grandes aventuras e transgressões permanentes, mas num dos momentos mais insólitos da história do western um triste vaqueiro profissional volta as costas ao grupo e desiste da missão devido a uma injustiça de tratamento no seio deles – forças motoras e espirituais condenadas à pura entropia. No tomo final da trilogia fronteiriça que é “Cities of the Plain”, comungando já da evolução sem freio depois do árido “Blood Meridian”, Mccarthy como que fala sobre este filme: «Sim. O tipo morreu ali de pé. O que eu mais recordo foi a rapidez com que ele caiu. Que nem um peso morto. Os filmes também nunca mostram essa parte como deve ser.» Em “The Culpepper Cattle Co.” a própria força da gravidade é um conceito vacilante, e os corpos, como as almas, dos actores dessa tragédia vão-se esvaziando, mesmo quando são puros como Grimes ou como o desertor.

Ritmo lânguido, olhar exangue, solo ressequido, gestação suspensa, o encontro entre o mais americano dos géneros e a sci-fi terrena. Todas as sequências finais são um tratado e o produto do choque dessas matérias desarranjadas, e são a profecia e o galopar até às fake news contemporâneas, fascismos de várias latitudes, modas castradoras, reaccionárias, reversão do certo e do justo que um dia foi a palavra dos homens e a palavra de deus: o miúdo que julgou encontrar o Paraíso Perdido nos colonos religiosos que se plantaram nas terras dos soberbos e dos ditadores, convencendo os seus parceiros a lutarem por uma verdade aparentemente cristalina, não consegue puxar das armas em tamanha amostra da delirante satisfação pela violência tresloucada, ficando mudo e estupefacto, percebendo que a soma de tudo aquilo foi o nada, o nada. Os seus companheiros morreram numa satisfação que se resumiu a isso, gratuita, sem redenção, e os religiosos da salvação que cantaram a canção que ele guardou da infância não querem saber desses mortos. Nem tempo do apocalipse, nem tempo transcendental. E o miúdo vai-se embora, parte, vira as costas – a solidão moderna. Sem resquício de um acreditar.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Pina Pellicer

ou a lídima aura dos anjos na terra.

30 anos de vida permitida pelos Deuses e pelos homens.

8 filmes entre o México natal, Marlon Brando, a sério O Fugitivo e The Alfred Hitchcock Hour.

Esteve apenas de visita. Flamejante. Su legado es una leyenda triste y memorable...

Deixou escrito de forma inacabada no seu diário:«Seres como yo deberían tener la libertad de morir en el momento en que la tristeza empezara a invadirlos porque, los seres como yo, somos seres débiles, incapaces de decirle no a la tristeza, no a la vida, nos dejamos llevar, nos dejamos morir por la tristeza.»

«Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida.»

Gênesis 3:24




sexta-feira, 7 de dezembro de 2018



Hondo, John Farrow, 1953


Produzido pela Wayne-Fellows Productions de John Wayne e Robert Fellows, “Hondo” é um filme de família e, como está implícito no nome da produtora, de amigos. John Farrow não é um indiferente tarefeiro e a sua fusão a Salvador Dalí no surrealista “The Big Clock” é mais um daqueles casos que tiram todo o tapete a quem vem com ideias escorregadias sobre a velha Hollywood. Na abertura, típica de qualquer western, vemos o forasteiro sozinho, a caminhar de movimentos e semblante ameaçadores, com a arma em punho, mas ao invés do cavalo apenas um solitário e auto-suficiente cão o acompanha. Na casa que lhe calhou em sorte encontrar vive uma mulher que esperará eternamente pelo marido que a abandonou, e o seu filho que faz tudo para proteger quem ama mas não se importa com a vida própria. O paraíso perdido que parece ter encontrado sem pedir, depois da odisseia Homérica, com as águas límpidas que o rodeiam, as montanhas destacadas do fundo e sob os céus que de quando em vez cegam depois da tempestade, a primeira luz da manhã pronta para abraçar os amantes, tudo isso vai ter de ser adiado, a um primeiro nível pela questão fundadora da guerra entre os nativos e os conquistadores, mais fundamente e antigamente pelo pecado original e pelos espinhos que a mentira espeta à verdade.
 
Hondo, ou seja, John Wayne mestiço, híbrido, sem pátria, dividido e estilhaçado pela morte da mulher amada que era índia como ele foi, jurou não se preocupar mais com as decisões do seu semelhante, depois da tragédia mais indesejada lhe ter batido à porta. Só que, a mulher branca que encontra e que em tudo é diferente da que perdeu torna-se a seus olhos e por causa do coração a mesma, o filho desta vai ter com ele de noite e abraça-o como se dele dependesse, o índio rival da sua actual condição salva-o da pena capital depois de um engano tremendo mas passa a admirá-lo quando ele vai contra ele e contra a sua tribo por causa somente da verdade básica; e de verdade tremenda em verdade tremenda a mulher descobre que Hondo matou o seu marido e a partir daí pede a última das mentiras, a mentira do para sempre que Hondo repetirá para si próprio rumo ao trilho irracional dos destinos. Algures no campo de batalha puramente humano, a mais acabada das mentiras volve-se a mais revolucionária e única das verdades.

 
Neste filme de uma beleza pacificada como o Éden sem os seus habitantes da praxe, e aonde a mentira faz o mais abalado dos ricochetes, ficamos a saber que o puma grita insultos e é valente, mas o coiote uiva insultos e é covarde - destrinça e dádiva sublime do nativo ao mestiço que viu de todos os lados e se queimou até à purificação nesse ferro e nesse fogo; e aqui entra John Ford, a parte ou a herança Fodiana – recentemente descobriu-se que ele teve alguma mão no filme, a fellow: entre a matança e o baile, a ilusão e o facto, o mito e a impressão, importa a assunção original que levou toda a narrativa até ao ponto crucial, salvando a contradição. Puma ou coiote, na guerra como no amor, a verdade é uma construção de amplexos e estruturas complexas, erigida em planos indestrutíveis e totais, carregada de pontos de vista desmultiplicadores, cheia de tempo e de espaço e de fúria, na qual só percebe o fundamental quem vislumbrar e sentir o pulso ao todo. Louis L'Amour, o homem das mil deambulações entre os ventos e cadáveres do deserto, baseando-se “Hondo” numa das suas mil histórias, proferiu um dia: «A mind, like a home, is furnished by its owner, so if one's life is cold and bare he can blame none but himself.» A acha da mentira que Hondo e a mulher ofereceram ao filho e à fogueira de uma possível família nova foi a acha que nutre o fogo essencial, que fará medrar as crias e um futuro que reconhece o passado – é o olhar e o dizer de Wayne para com a raça prestes a ser abatida mas não esquecida. A família cruzada que se fará uma, liberta e fiel, no mais lendário dos avatares.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018



Under Pressure, Raoul Walsh, 1935


“Under Pressure” é um filme chocante, mesmo saído da câmara exposta às balas do camionista e rancheiro Raoul Walsh ou do corpo e da mente marcadas do grande argumentista Borden Chase que antes de dar à pena foi motorista de gangsters e cavador de tuneis. Chocante porque a carne e os músculos de super-homem que trabalham dentro das entranhas da terra valendo-se do ar comprimido e do veneno que vai pacientemente corroendo os órgãos, os membros e toda a restante matéria, quer mesmo assim bater o adversário do lado oposto, tal como nas grandes guerras ou nas corridas de cavalos, como se tivessem inspirado o elixir da longa-vida ou cheirado um amor para lá de todas as considerações. Existências breves, intensas, cadentes, sempre surpreendidas pelo choque de existir. Ratos que também são heróis e que iluminam os lares de milhões de seus próximos, matam a sede e fantasiaram com o surfar na internet, encarnando nos compadres e rivais da electricidade de "Manpower". Apaixonados pelo vislumbre do centro do mundo ou pela simples faísca da picareta e do consequente som inaudito no mineral assombroso. E que não querem medalhas para além da cerveja no final das etapas, da função cumprida conforme o posto, da estrela-guia feminina que disputam com as vísceras do subsolo.
 
Num dos episódios mais hilariantes da comédia humanista “Suttree”, Cormac MacCarthy descreve assim a busca da personagem principal ao idiota que fala sempre a verdade chamado Harrogate, dentro da escuridão fétida dos esgotos e das cavernas que nos sustêm em delicados liames e esperanças, em busca de um tesouro ou de um brilho que a raça desprezou algures na caminhada: «Calcorreou estreitas passagens laterais e perscrutou os mantos de lama no leito de pedra da gruta em busca de pegadas, mas há anos que ninguém passava por ali, ao que tudo indicava. Os nomes e datas na pedra tornaram-se mais antigos. Cimérios mortos sem descendência. Falta de espírito aventureiro na alma das novas gentes ou ausência de amor pelas trevas».
 
De “Under Pressure” ressuma suor e a morte a escavar em cada poro por cada segundo, mas logo no início vemos um dos mais inauditos planos cinematográficos alguma vez construídos e iluminados, ratos-homens rivais ao encontro uns dos outros no fétido carreiro até à altercação capital na meta, até à glória final apagada e sem eco nem homenagem da claridade exterior. E assim percebemos que certos homens, na equação vacilante e ilógica rasurada na sua morfologia e na sua condição, desprezando a ciência e a física básica em favor da poesia e do desconhecido trucidantes, cavam-se completos no instante assombrado. O frémito: fogos invisíveis em combustões suicidárias de fórmulas desconhecidas que nem toda a água de todos os rios e mares conseguem apagar – à imagem daqueles esguichos sobre o Hudson que abalam as mulheres em pressentimento e matemática macabra a par da erótica pasmosa. O mais duro dos cineastas é também o mais frágil e delicado dos filósofos. O amor à treva é o amor à vida e ao cosmos. Modernos. Futuristas. Utópicos. Uma das grandes obras-primas estilhaçadas dos anos 1930.