segunda-feira, 27 de abril de 2020

O espectáculo mediático mata mais do que qualquer vírus

Um trecho da parte IV do Conto em Tempo de Pandemia "Autocertificação" que o Paulo Faria tem vindo a publicar no Jornal Público.

E que no meio de toneladas de lixo e de inutilidades diárias é o que mais me interessa.

«A atmosfera saturara-se de mensagens optimistas, «Juntos vamos vencer esta batalha», «Juntos vamos conseguir». Havia bandeiras de Portugal nas varandas, como durante os campeonatos europeus de futebol, como durante os mundiais. Na prática, porém, as pessoas que soltavam ou propagavam essas tiradas esperançosas e que desfraldavam às janelas as bandeiras ufanas eram as primeiras a abraçar os cenários mais negros, recusando-se a correr o mais pequeno risco. Num quadro de incerteza, em que pouco se sabia do vírus, optavam por pressupor o pior, deduziam que ele se transmitia de todas as maneiras possíveis e imaginárias, através do ar, à distância, debaixo de água, preferiam achar que ele resistia a tudo, ao calor, ao frio, à secura, à luz do Sol, que ele se colava a todas as superfícies, à pele humana, ao plástico, ao cartão, aos tecidos, obstinado, feroz, quase indestrutível, a não ser por acção do sacrossanto álcool etílico. As pessoas mostravam-se, simultaneamente, muito optimistas e muito pessimistas, sem que isso as afectasse, sem que se apercebessem, sequer, dessa contradição insanável. Pior: como se essa contradição as fortalecesse e lhes desse alento. Como se o optimismo piegas e o pessimismo histérico se reforçassem mutuamente.»

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