quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Top 2020



Filmes:

- Richard Jewell (Clint Eastwood)

A verdade é a verdade, sobretudo nestes tempos de decadência dela. Tão Langiano nesse aspecto férreo do que está certo, «o que é, é», forma e conteúdo consonantes, como a planar na leveza humanista e formal dos últimos filmes de Jean Renoir, a planar no amor de Mães e Filhos.

- Portrait de la jeune fille en feu (Céline Sciamma)

Rimas infinitas em fogo, música e carne e água; carne, música e água e fogo, corpo uno e vibrante; e uma câmara forte e trémula a ousar a frontalidade abissal; espantada na fusão primordial dos elementos criadores.

- The Last Dance (Jason Hehir)

Regresso à Odisseia, porventura, e como sempre, pela derradeira vez: Homero e Jordan, irmãos de sangue. Ainda: Jodan, the great American novel.

- J'accuse (Roman Polanski)

A civilização é sempre um tolo-lúcido contra a podridão do sistema; quanto mais lúcido, mais tolo, mais certo.

- Dark Waters (Todd Haynes)

Outra demanda pela verdade onde se constata com clareza clínica e clássica que este nosso mundo / tempo anos 2000 (plasticamente feio, fotograficamente de filtros avessos) degradou e envergonhou o Inferno Dantesco.

- Le Sel des larmes (Philippe Garrel)

Não se enfrenta a lua, olhos nos olhos, impunemente; nem com as costas quentes pelas novas tecnologias.

- It Must Be Heaven (Elia Suleiman)

Mesmo que possa ser um pouco «filme para festival»: Alguém ainda a acreditar que a borboleta de Griffith pode ser um rosto.

- The Devil All the Time (António Campos)

Película a queimar, montagem de choques e invisível, cores das coisas e do seu oposto perfeito; o diabo eterno das regiões possuídas da terra e da mente fundida em emulsão certa.

- Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto (Rui Garrido) / - Para Cá do Marão (José Mazeda)

Mas ou por causa das fragilidades: o prazer de ver humanidade íntegra e com princípios (vitais ou mortais), puros ou complexos, que é o mesmo.


Pior: 

- Nuestro tiempo (Carlos Reygadas)

Pretensões ultra-Kubrickianas vácuas; violações, incestos, apocalipses: cinematográficos, familiares, civilizacionais, etc. Humilhações básicas.


(Re) descobertas:

- The Avenging Conscience: or 'Thou Shalt Not Kill' (D.W. Griffith)

Meter em grande-plano o que tem de estar em grande-plano; e os fantasmas também.

- Stroszek (Werner Herzog)

Anti-Reygadas: fôlego cósmico em transgressão e intimidade: poesia na prosa, prosa na poesia, poesis primeva. Gigantesco e cifrado de 2001 - Odisseia no Espaço, nos quartos de Griffith.

- The Rough South of Larry Brown (Gary Hawkins)

«You must kill all your darlings»... caso contrário, a metamorfose para  um The Devil All the Time; deus sem freios.


Livros:

- Gente Acenando para Alguém que Foge (Paulo Faria)

Cormac McCarthy + Jack Kerouac + a infinita lava ultra-vulcânica das paixões vertidas no papel em tinta de sangue animalesca / hagiográfica / pura.


Discos:

- Goela Hiante (Adolfo Luxúria Canibal + Marta Abreu)

Palavras arcaicas, descarga eléctrica em parto.


Exposições:

- Do not go gentle into that good night (Hélder Castro)

Incomensurável filigrana; antes da civilização e depois do apocalipse, imperturbável.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Encontros Cinematográficos do Fundão 2020, II

 



Onna no naka ni iru tanin, de Mikio Naruse, 1966

Alguns comentadores têm nos últimos anos valorizado a propulsão documental de boa parte da filmografia de Mikio Naruse, e as primeiras sequências de Onna no naka ni iru tanin, o seu antepenúltimo filme datado de 1966, parecem comprovar isso mesmo. Um homem no caos de uma grande metrópole, destacado e perdido no enquadramento, a bruteza sonora e a câmara cravada no solo, observacional mas a tomar o pulso e a temperatura a alguém que parece eminentemente aflito. A próxima cena, um encontro estranhamente casual entre dois amigos num bar, parece continuar essa demanda com a realidade descarnada, a definição de um espaço e de um tempo bem definidos a conservar para uma posteridade. Mas como em muitas outras obras desse misterioso e sabido cineasta japonês, e talvez sobretudo nesta fase derradeira, com a lucidez afiada, já sem ilusões, o peso realista vai abrir a porta para todas as abstracções e alucinantes figurações de uma tragédia puramente humana, omnívora, onde alguns seres caminham para a perdição não por qualquer maldade intrínseca a si mesmos mas sobretudo pelo inexorável descontrole (ou abandono) dos instintos mais básicos: desejo, curiosidade, proibição, transgressão, inocência, tudo a nível sexual como existencial.

Se falei num encontro inicial estranho, dois amigos sozinhos no meio mais universal num acaso duvidoso, os não ditos pressentidos, o controle duro de um e a leveza do outro, e a noção clara de que algo não está bem, de que um perigo espreita, um rastilho invisível que sabemos irá dinamitar a pura observação e destapar uma catástrofe, é porque já estamos perante uma dramaturgia puramente Hitchkokiana, neste caso um Strangers on a Train invertido, ao avesso, contendo todos os fetiches predatórios e sexuais de Strangers num limbo elíptico em que os flashbacks nos são dados a uma luz presente e encantatória, numa autopsia técnica e estilística que seca precisamente o fetiche pelo fetiche. Somos todos convocados a apreciar e a escavar os factos e as dúvidas, os culpados e os inocentes, instigadores e vítimas, o bem e o mal, a ilusão e a carne, para percebermos a possibilidade ou impossibilidade do julgamento. E só por este lado já é absolutamente fascinante apreciar o Thriller e as suas marcadas (mesmo que subtis) mecânicas ocidentais refeito e transgredido pelo aclarar paciente e inflexível de um olhar incontestavelmente outro, oriental. As distâncias da lente de Naruse aos rostos e corpos de cada personagem são tão decisivas e reveladoras como as pulsões que levaram à morte; pulsões, animalescas ou virginais, a que só poderemos aceder através da nossa própria experiência, numa experiência auxiliada pelas formas estritamente cinematográficas que imprimem um tipo de debate e de reconhecimento inauditos.

Mas talvez Naruse nunca tenha sido tão vertiginoso, metafísico e realista como aqui, passando de um estado ao outro sem aviso ou incorporando tudo. Sobretudo numa banda-sonora inclassificável que só pode ser a imagem e a ilustração estraçalhada da cabeça do suposto assassino (nunca iremos ter certezas acusatórias), uma orquestração infernal urdida a picadas eléctricas e electrónicas, peças clássicas harmónicas e calibradas, fogos-de-artifício, fontes indefinidas e distorcidas, natureza vergada, invenções e doenças cerebrais ou vindas dos fundos da alma, numa desarmonia que torna clara uma falta inesquecível ou uma visão que ultrapassou limites inultrapassáveis, sejam eles sacros ou viciados. Esse marido traidor que chega a confessar à sua esposa que nunca foi um verdadeiro amante, que talvez só tenha ficado enfeitiçado pelas tais visões que nos podem queimar de tão poderosas, vai lentamente e sonicamente da perdição à salvação, da desarmonia à limpidez. Um ritmo inexorável em constante contradição, uma resolução inesperada saída de uma elisão kamikase e redentora: depois dessa cena da praia em que o casal decide mais uma vez esquecer o passado, esquecer por eles os dois, pelos filhos que precisam deles, pela mãe dele que tudo sabe, pelo amigo que lhe irá pedir que esqueça o facto de ter matado a sua própria mulher, pelo bem-estar geral, pelos ventos passados que não moem moinhos, esse ser atormentado fecha-se num quarto e num dentro terminal (e os quartos aqui são câmaras ardentes sentenciosas) que se torna o último reduto respirável, acatando a via exemplar, confessional, num gesto que espera curador.

E percebemos a grandeza e a amplitude dessa tomada de decisão irrevogável: o homem desfeito pela dúvida faz o contrário dos decisores ou políticos corruptos, o oposto do poder absoluto e da autocracia indrominada, das esquerdas e das direitas partidárias radicais e escorregadias, enfim, da ausência de uma moral em absoluto. Ao escolher a assunção de “cabeça erguida”, todo o negativo e todo o terrorífico ficam imediatamente para além do bem e do mal, no campo da circunstância e da patologia existencial, ou seja: no campo do medo. Assistimos a uma sublime reparação logo destruída por outro tipo de medo que prefere a paz-podre da nossa civilização pós grande Guerra, com a sua mulher a transfigurar-se – e aqui a ousadia expressionista próxima do fantástico e do filme noir é tremenda - e a matar literalmente a inocência arrancada às tripas e ao determinismo social.

As salvíficas bordas de luz a brotarem do eclipse social e da alma opaca do medo comprimido, a escuridão fomentada pelas regras e pelas leis a eletrocutarem um regresso inicial. Também para além dos julgamentos: jamais as esposas são más, jamais os maridos e a avô são condenáveis, tais como as brincadeiras intrincadas e cruéis dos filhos. Em Onna no naka ni iru tanin todos forçam uma negociação da condenação e do castigo como forma de continuação perpétua de um estado das coisas. Todos menos aquele que esteve no lugar do crime e que não sabendo nada de exacto, apesar das suas mão terem supostamente esganado a garganta alheia, entende que tudo é passível de esclarecimento. E de continuação, basta olhar defronte a morte. Aceitá-la.


quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Encontros Cinematográficos do Fundão 2020, I

 


Entrevista a Paulo Faria

 

por José Oliveira

 

 1.     Paulo, escreveste o primeiro dos teus romances em 2016, Estranha guerra de uso comum, segundo disseste, para ires em busca da guerra do teu pai (a guerra colonial) mas igualmente para travares uma guerra íntima com as tuas memórias e os teus demónios. Surgiu aí, nessa necessidade pessoal e urgente, a vontade de te atirares para um romance em nome próprio, ou já tinhas tentado antes, nesses anos em que de modo hercúleo e muitas vezes obsessivo traduziste obras essenciais e complicadas?

               A tradução literária comporta, à sua maneira, uma forma de autoria. Portanto, em certa medida, antes de me lançar na escrita de um romance em nome próprio, eu já escrevera romances, os romances dos autores que verti em português. Acho que isso foi muito importante na minha formação enquanto escritor, porque me deu a coragem de escrever. Há pessoas que escrevem com uma certa facilidade, mas não é o meu caso. Vivo um bocado apavorado com o receio de escrever banalidades, coisas sem interesse nenhum. Um pavor excessivo, talvez. Hemingway disse uma vez que aquilo que caracteriza um bom escritor é ter dentro de si uma espécie de «detector de merda», que lhe permite perceber se aquilo que escreveu vale a pena ser publicado ou se é lixo. Publiquei textos na revista Ler e no Público, por ocasião de viagens que fiz. E, quando o meu pai morreu, em 2013, percebi que chegara o momento de escrever um romance (um romance marcadamente autobiográfico, sobre a minha relação com o meu pai) e percebi também que estava pronto para o fazer.

2.     Lançaste já este ano um segundo romance, Gente Acenando para Alguém que Foge, que se por um lado é uma continuação do anterior, acho que rasgas novos horizontes, nomeadamente no território das grandes aventuras. É verdade que o protagonista enfrenta uma certa perdição, uma certa melancolia intransmissível, mas Moçambique surge-nos sempre como fonte de mistérios e fascínios fulgurantes. Como foi esse embate, esse corpo-a-corpo com o terreno ele mesmo e com as fantasmagorias?

               Moçambique é um lugar estranhíssimo. É um lugar violento, cru, onde nos sentimos agredidos, mas onde, ao mesmo tempo, temos vontade de regressar. É um lugar onde parece não haver história, onde tudo parece ter começado ontem, mas, ao mesmo tempo, é um lugar onde me senti em casa, onde senti que estava a regressar ao meu passado, à minha história. O meu pai combateu ali, andou por aquela terra, fez ali a guerra. As fotografias que ele trouxe da guerra foram os meus brinquedos de infância. Moçambique passou, portanto, a ser, mesmo antes de eu lá ter posto os pés, a terra da minha infância.

               Em Maúa, no Niassa, falei com um velho padre italiano, numa missão católica, um homem que chegou a Moçambique ainda jovem. Ele disse-me que, quando ali chegou, em 1975, tentou ajudar, tentou dar o melhor de si. Mas rapidamente percebeu que não chegava. Que, se desse e não recebesse, ficaria esgotado num instante e, ao fim de um ano, ir-se-ia embora. Disse-me que já viu acontecer isso a muita gente. Homens e mulheres que chegam a Moçambique sedentos de ajudar e que rapidamente perdem as energias. No fundo, o que ele me estava a dizer é que, se chegarmos àquela terra convencidos de que sabemos muito e temos muito para ensinar àquelas pessoas, vimo-nos embora com o rabo entre as pernas. A única hipótese é chegar lá com vontade de aprender. Não é nada fácil, mas vale a pena o esforço.

               Ele disse-me outra coisa extraordinária: «Aqui, em África, é preciso elasticidade mental. Uma vez criado esse espírito, tudo nos passa a parecer normal. E então chegamos à Europa e sentimo-nos assustados. Passa a ser a Europa que nos assusta, não África. África passa a ser normal.» Pus-me a reler o Inferno, de Dante, há uns dias, e deparei com um trecho em que Virgílio refere o momento em que o universo sentiu «a concórdia dos elementos», e depois diz que há quem creia que, deste modo, tudo voltou ao caos. Ou seja, o cessar da discórdia, segundo Dante, seria a confusão, o caos. Isto fez-me lembrar as palavras daquele velho padre. Moçambique é um lugar caótico, mas talvez o caos esteja, afinal, na nossa existência aqui no Ocidente, nesta nossa vida regida por uma concórdia postiça, por consensos espúrios que nos fazem aceitar como inevitável uma vida de infelicidade e de angústia para a grande maioria de nós. 

3.     Falei nas aventuras, mas toda essa grande viagem é entrecortada por um grande intimismo, seja ele confessionalismo puro ou catarse. Disseste na apresentação deste livro que podes usar tudo o que qualquer pessoa te diga ou conte a “teu favor”. «Tudo o que disser poderá e será usado contra você no tribunal», como vemos nos filmes americanos. Impões-te alguns limites nesse campo ou a literatura é mesmo o território da liberdade e tu o único juiz?

               Borges tem um texto magnífico chamado A Cegueira, em que escreve a certa altura: «Ninguém é poeta das oito às doze e das duas às seis. Quem é poeta é-o sempre, e vê-se assaltado pela poesia continuamente.» Ora, quem diz poeta diz romancista. A partir do momento em que decidi escrever, passei a ser assaltado continuamente pela escrita. É um vício terrível, uma droga, em certa medida. Sinto muitas vezes que tenho de me dominar, tento passar algum tempo a conversar com os outros sem que tudo o que me digam seja por mim coligido para uso futuro, mas é difícil. Ou antes, é impossível. O mundo é um lugar fascinante, estão sempre a acontecer coisas debaixo do meu nariz, as pessoas estão sempre a contar-me histórias, estou sempre a ouvir conversas, e tenho a impressão de que, se não agarrar todas essas jóias, elas se vão perder. Tenho muito medo de desperdiçar boas histórias. E depois ainda há a memória e a infância, que são um poço sem fundo. Não consigo deixar de tecer mortalhas, tapeçarias, panejamentos com estes fios que estou sempre a agarrar. 

4.     Uma das tuas características mais conhecidas enquanto tradutor é a investigação e o trabalho de campo, que, em alguns casos, decides levar a cabo, desde a “reconstituição” de alguns passos do assassinato de JFK para o Libra, de Don DeLillo, até às viagens à terra natal de Cormac McCarthy e ao seu Oeste. Nos teus livros, todo esse trabalho detectivesco surge impresso, muitas vezes passo a passo, faz parte da narrativa desde o presente até aos tempos remotos da infância. A um nível extremamente preciso, mas também onírico, muitas vezes feérico, quase fora de controlo. Uma vez disse para mim mesmo que, se tivesse de usar uma fórmula para a tua escrita, seria algo do género: Cormac McCarthy + Jack Kerouac. A crueza de McCarthy e o lirismo de Kerouac. Mas julgo que é redutor, pois já inventaste uma constelação única. Utilizas todas essas influências ou procuras esquecer tudo – se tal for possível - e começar de novo?

               Os bons livros que lemos marcam-nos, claro. No caso de um tradutor, como eu, os textos que traduzo marcam-me muito mais, porque a tradução implica uma leitura muito atenta, um dissecar da escrita do autor palavra a palavra, frase a frase. Hemingway falava muito do «icebergue do romancista», aquela ideia de que, por cada página que um bom escritor escreve, há outras dez que ficam por escrever. Mas, dizia ele, o leitor repara se essas páginas que não chegaram a ser escritas estão lá ou não. Se não estiverem, elas surgem como buracos na prosa. Parece-me evidente que este icebergue do escritor não é formado somente pelas suas vivências, mas também por tudo o que leu. Portanto, sei que, quando me sento a escrever, mesmo que não estejam à tona de água, o Kerouac que traduzi e o Cormac McCarthy que traduzi estão em mim, fazem parte do meu icebergue. 

5.     É ainda evidente na estrutura dos teus romances, como também em muitos dos artigos que vais publicando nos jornais, uma montagem que nunca surge “programática” nem simplesmente paralela, mas antes é sempre surpreendente, ora cortando a direito num momento grave, ora retomando o fio a outra meada ou tecendo as mais inesperadas rimas e alusões entre os diversos tempos e espaços. Sabendo que és um cinéfilo, procuras no cinema alguns destes e de outros processos?

               O cinema sempre foi para mim muito importante. Fui uma criança solitária, um adolescente solitário. Nunca tive muitos amigos, era uma pessoa estranha, não conseguia conversar com os outros, dizia piadas de que ninguém se ria, lia livros que ninguém lia. A escola e o liceu foram para mim um longo tormento. A universidade foi outro tormento. O cinema sempre foi uma maneira de fugir dos outros. Metia-me numa sala de cinema, sozinho, sentava-me na plateia, as luzes apagavam-se e, durante uma hora e meia, duas horas, três horas, ninguém me chateava. Se a sala estivesse vazia e eu fosse o único espectador, tanto melhor. Claro que as coisas que aconteciam na tela assumiam proporções avassaladoras. Sonhava com os filmes, metia-me na pele das personagens, imaginava finais alternativos, ramificações da história. Quando gostava de um filme, ia vê-lo duas, três, quatro vezes. Penso que, sem dar por isso, o modo de narrar cinematográfico se meteu em mim. Art Spiegelman diz que a banda desenhada permite fazer coisas que o cinema não consegue fazer, nomeadamente contrapor momentos temporais diferentes em simultâneo, jogar com o tempo e com o espaço de um modo muito ágil. A prosa também o permite, obviamente. Claro que isto são tudo reflexões que faço agora, pondo-me de fora da escrita. No momento em que escrevo, limito-me a escrever, não penso no que vai sair. 

6.     Por último, e regressando ao início da conversa, achas que só se deve escrever sobre aquilo que nos marca e assombra ou é possível escrever sobre qualquer assunto de um modo pessoal e omnívoro?

               Há escritores fabulosos que não escrevem, pelo menos directamente, acerca dos seus demónios íntimos. Mario Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, só para citar dois de que gosto muito. Não me parece legítimo, como já ouvi fazer, estabelecer uma espécie de hierarquia entre a ficção sem pendor autobiográfico, como a destes autores, que seria a mais nobre, e a ficção de pendor autobiográfico (Lobo Antunes, para só citar um dos exemplos maiores na nossa língua), encarada como uma espécie de parente pobre. Acho que a linha divisória é outra. Voltamos sempre a Borges, que escreveu: «O encantamento, como disse Stevenson, é uma das qualidades essenciais que deve ter o escritor. Sem o encantamento, o resto é inútil.» Respondendo à pergunta, portanto: é possível escrever sobre qualquer assunto, desde que o escritor e, como tal, o leitor, sintam o encantamento a envolvê-los. Sem isso, é melhor, de facto, estarmos quietos e dedicarmo-nos a outra coisa.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto

 



Mestre / jamais Mestre: filosofia prática.

 

Sério Fernandes, tal como José Saramago revelou certa vez, tem uma visão total e desempoeirada da sua obra artística e do seu legado e assim sabe que passado o reino dos humanos nesta terra o cosmos não saberá que Homero escreveu A Odisseia. Também como os novíssimos e primitivos Glauber Rocha, Werner Herzog ou Rainer Werner Fassbinder, acredita que o processo, a vivência e a comunhão durante a feitura de uma obra de arte é o fulcro, jamais o resultado final. Como esses e não muitos mais, só dialoga com limites e abismos, sem meias verdades, uma questão existencial: uma coisa é uma coisa e não outra coisa: ou é arte ou é cultura: ou é Apolíneo ou é Dionisíaco: ou é vida ou é morte.

Limpar a merda toda de mais de cem anos de confusão entre a arte do cinema e o negócio do cinema; limpar a datação e os atavios argumentistas; limpar todos os acessórios, todos os efeitos, todos os filtros, todas a leis vãs, económicas e castradoras de uma invenção e de um meio gigantesco (o cinematógrafo) constantemente violado pelo pecado original do lucro, da ganância e do ego: eis a demanda de Sério Fernandes. Um meio incomensurável como o cinematógrafo não pode somente servir para contar «historinhas», tem de agarrar a eternidade, eis a moral. Como esses (Glauber, Herzog, Fassbinder) e não muitos mais, se a feitura de uma obra de arte é questão de vida ou de morte, tudo é permitido: roubos, empréstimos, mentiras, falsificações, amor; e em última ou primeira instância, a destruição do produto final; justiça poética: enterrar as latas de película num buraco do Porto, na terra Portuense, gesto matricial, será o acto derradeiro. Limpar (e libertar) a obra e o criador da potência maléfica do Tema, do compromisso, da utilidade, da responsabilidade.

Convocar os irmãos Auguste e Louis Lumière, Aurélio Paz dos Reis, e ficar-se nessa modernidade definitiva, para tudo ser revolucionário, como na primeira vez, como na invenção, de olhar limpo. Uma síntese cósmica onde um único Quadro Artístico Cinematográfico (fixo, de câmara na mão ou no ombro, plano sequência de um minuto – eis uma tentativa de definição impossível) tem de comportar todos os milhões de planos cinematográficos que sonhamos e rejeitamos, todo o cinema e não-cinema. Nesse quadro cinematográfico estão todas as paralelas de D. W. Griffith, todas as dialécticas de Serguei Eisenstein, toda a montagem; todas as gestas  e toda a música de Luís de Camões («Camões, o que vale a pena ler na cadeira de “realização cinematográfica”, a par de Charles Baudelaire e de Pier Paolo Pasolini, é isto que tenho para vocês lerem», S.F); nesse quadro cinematográfico tem de estar obrigatoriamente a experiência do brilho e da publicidade e do espectáculo em fora-de-campo que ele (e muitos) praticou antes da morte e da ressurreição. No quadro cinematográfico concebido por Sério Fernandes - e oferecido de mãos vazias à irmandade dos seus alunos, essa comunhão e coro grego - deseja-se alcançar o princípio do universo, límpido, claro, intacto; e que não sirva para nada senão para esse fim, o da criação cinematográfica.

Em Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto, de Rui Garrido, tudo isso nos é provado e legado com a única das certezas definitivas e lúcidas: a paixão. Quem assim se expressa e ama, só pode estar certo. Ao mesmo tempo que se assume o absoluto, assume-se a morte, a consonância dos vivos com a consonância dos mortos, numa rotação perfeita. Sério Fernandes ama a lua, o sol, os animais vivos, os animais mortos, o aluno mais interessado, o aluno mais desprezado; o épico, os humilhados, os ofendidos, o complexo, o invisível: de igual para igual. Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto traça o mesmo percurso ascendente da fabulosa vida de Sério Fernandes: da via-crúcis e da escuridão até aos altos e à claridade solar sem problemas de consciência.

Sem problemas de consciência: entre tantas vidas dentro de vidas e filmes dentro de filmes, é por isso que a existência de Sério Fernandes - O Mestre da Escola do Porto é essencial; mesmo ou pela contradição ao mestre, mesmo ou pelo forçar do registo e da confissão para lá da memória ou do mito a que Sério Fernandes estaria sujeito caso esta obra não estreasse comercialmente. No entanto, sem problemas de consciência.