sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Encontros Cinematográficos do Fundão 2020, II

 



Onna no naka ni iru tanin, de Mikio Naruse, 1966

Alguns comentadores têm nos últimos anos valorizado a propulsão documental de boa parte da filmografia de Mikio Naruse, e as primeiras sequências de Onna no naka ni iru tanin, o seu antepenúltimo filme datado de 1966, parecem comprovar isso mesmo. Um homem no caos de uma grande metrópole, destacado e perdido no enquadramento, a bruteza sonora e a câmara cravada no solo, observacional mas a tomar o pulso e a temperatura a alguém que parece eminentemente aflito. A próxima cena, um encontro estranhamente casual entre dois amigos num bar, parece continuar essa demanda com a realidade descarnada, a definição de um espaço e de um tempo bem definidos a conservar para uma posteridade. Mas como em muitas outras obras desse misterioso e sabido cineasta japonês, e talvez sobretudo nesta fase derradeira, com a lucidez afiada, já sem ilusões, o peso realista vai abrir a porta para todas as abstracções e alucinantes figurações de uma tragédia puramente humana, omnívora, onde alguns seres caminham para a perdição não por qualquer maldade intrínseca a si mesmos mas sobretudo pelo inexorável descontrole (ou abandono) dos instintos mais básicos: desejo, curiosidade, proibição, transgressão, inocência, tudo a nível sexual como existencial.

Se falei num encontro inicial estranho, dois amigos sozinhos no meio mais universal num acaso duvidoso, os não ditos pressentidos, o controle duro de um e a leveza do outro, e a noção clara de que algo não está bem, de que um perigo espreita, um rastilho invisível que sabemos irá dinamitar a pura observação e destapar uma catástrofe, é porque já estamos perante uma dramaturgia puramente Hitchkokiana, neste caso um Strangers on a Train invertido, ao avesso, contendo todos os fetiches predatórios e sexuais de Strangers num limbo elíptico em que os flashbacks nos são dados a uma luz presente e encantatória, numa autopsia técnica e estilística que seca precisamente o fetiche pelo fetiche. Somos todos convocados a apreciar e a escavar os factos e as dúvidas, os culpados e os inocentes, instigadores e vítimas, o bem e o mal, a ilusão e a carne, para percebermos a possibilidade ou impossibilidade do julgamento. E só por este lado já é absolutamente fascinante apreciar o Thriller e as suas marcadas (mesmo que subtis) mecânicas ocidentais refeito e transgredido pelo aclarar paciente e inflexível de um olhar incontestavelmente outro, oriental. As distâncias da lente de Naruse aos rostos e corpos de cada personagem são tão decisivas e reveladoras como as pulsões que levaram à morte; pulsões, animalescas ou virginais, a que só poderemos aceder através da nossa própria experiência, numa experiência auxiliada pelas formas estritamente cinematográficas que imprimem um tipo de debate e de reconhecimento inauditos.

Mas talvez Naruse nunca tenha sido tão vertiginoso, metafísico e realista como aqui, passando de um estado ao outro sem aviso ou incorporando tudo. Sobretudo numa banda-sonora inclassificável que só pode ser a imagem e a ilustração estraçalhada da cabeça do suposto assassino (nunca iremos ter certezas acusatórias), uma orquestração infernal urdida a picadas eléctricas e electrónicas, peças clássicas harmónicas e calibradas, fogos-de-artifício, fontes indefinidas e distorcidas, natureza vergada, invenções e doenças cerebrais ou vindas dos fundos da alma, numa desarmonia que torna clara uma falta inesquecível ou uma visão que ultrapassou limites inultrapassáveis, sejam eles sacros ou viciados. Esse marido traidor que chega a confessar à sua esposa que nunca foi um verdadeiro amante, que talvez só tenha ficado enfeitiçado pelas tais visões que nos podem queimar de tão poderosas, vai lentamente e sonicamente da perdição à salvação, da desarmonia à limpidez. Um ritmo inexorável em constante contradição, uma resolução inesperada saída de uma elisão kamikase e redentora: depois dessa cena da praia em que o casal decide mais uma vez esquecer o passado, esquecer por eles os dois, pelos filhos que precisam deles, pela mãe dele que tudo sabe, pelo amigo que lhe irá pedir que esqueça o facto de ter matado a sua própria mulher, pelo bem-estar geral, pelos ventos passados que não moem moinhos, esse ser atormentado fecha-se num quarto e num dentro terminal (e os quartos aqui são câmaras ardentes sentenciosas) que se torna o último reduto respirável, acatando a via exemplar, confessional, num gesto que espera curador.

E percebemos a grandeza e a amplitude dessa tomada de decisão irrevogável: o homem desfeito pela dúvida faz o contrário dos decisores ou políticos corruptos, o oposto do poder absoluto e da autocracia indrominada, das esquerdas e das direitas partidárias radicais e escorregadias, enfim, da ausência de uma moral em absoluto. Ao escolher a assunção de “cabeça erguida”, todo o negativo e todo o terrorífico ficam imediatamente para além do bem e do mal, no campo da circunstância e da patologia existencial, ou seja: no campo do medo. Assistimos a uma sublime reparação logo destruída por outro tipo de medo que prefere a paz-podre da nossa civilização pós grande Guerra, com a sua mulher a transfigurar-se – e aqui a ousadia expressionista próxima do fantástico e do filme noir é tremenda - e a matar literalmente a inocência arrancada às tripas e ao determinismo social.

As salvíficas bordas de luz a brotarem do eclipse social e da alma opaca do medo comprimido, a escuridão fomentada pelas regras e pelas leis a eletrocutarem um regresso inicial. Também para além dos julgamentos: jamais as esposas são más, jamais os maridos e a avô são condenáveis, tais como as brincadeiras intrincadas e cruéis dos filhos. Em Onna no naka ni iru tanin todos forçam uma negociação da condenação e do castigo como forma de continuação perpétua de um estado das coisas. Todos menos aquele que esteve no lugar do crime e que não sabendo nada de exacto, apesar das suas mão terem supostamente esganado a garganta alheia, entende que tudo é passível de esclarecimento. E de continuação, basta olhar defronte a morte. Aceitá-la.


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