Entrevista a Paulo
Faria
por José Oliveira
A tradução literária comporta, à sua maneira, uma forma
de autoria. Portanto, em certa medida, antes de me lançar na escrita de um
romance em nome próprio, eu já escrevera romances, os romances dos autores que
verti em português. Acho que isso foi muito importante na minha formação
enquanto escritor, porque me deu a coragem de escrever. Há pessoas que escrevem
com uma certa facilidade, mas não é o meu caso. Vivo um bocado apavorado com o
receio de escrever banalidades, coisas sem interesse nenhum. Um pavor
excessivo, talvez. Hemingway disse uma vez que aquilo que caracteriza um bom
escritor é ter dentro de si uma espécie de «detector de merda», que lhe permite
perceber se aquilo que escreveu vale a pena ser publicado ou se é lixo. Publiquei
textos na revista Ler e no Público, por ocasião de viagens que fiz.
E, quando o meu pai morreu, em 2013, percebi que chegara o momento de escrever
um romance (um romance marcadamente autobiográfico, sobre a minha relação com o
meu pai) e percebi também que estava pronto para o fazer.
2.
Lançaste já este ano um segundo romance, Gente
Acenando para Alguém que Foge, que se por um lado é uma continuação do
anterior, acho que rasgas novos horizontes, nomeadamente no território das
grandes aventuras. É verdade que o protagonista enfrenta uma certa perdição,
uma certa melancolia intransmissível, mas Moçambique surge-nos sempre como
fonte de mistérios e fascínios fulgurantes. Como foi esse embate, esse
corpo-a-corpo com o terreno ele mesmo e com as fantasmagorias?
Moçambique é um lugar estranhíssimo. É um lugar violento,
cru, onde nos sentimos agredidos, mas onde, ao mesmo tempo, temos vontade de
regressar. É um lugar onde parece não haver história, onde tudo parece ter
começado ontem, mas, ao mesmo tempo, é um lugar onde me senti em casa, onde
senti que estava a regressar ao meu passado, à minha história. O meu pai
combateu ali, andou por aquela terra, fez ali a guerra. As fotografias que ele
trouxe da guerra foram os meus brinquedos de infância. Moçambique passou,
portanto, a ser, mesmo antes de eu lá ter posto os pés, a terra da minha
infância.
Em
Maúa, no Niassa, falei com um velho padre italiano, numa missão católica, um
homem que chegou a Moçambique ainda jovem. Ele disse-me que, quando ali chegou,
em 1975, tentou ajudar, tentou dar o melhor de si. Mas rapidamente percebeu que
não chegava. Que, se desse e não recebesse, ficaria esgotado num instante e, ao
fim de um ano, ir-se-ia embora. Disse-me que já viu acontecer isso a muita
gente. Homens e mulheres que chegam a Moçambique sedentos de ajudar e que
rapidamente perdem as energias. No fundo, o que ele me estava a dizer é que, se
chegarmos àquela terra convencidos de que sabemos muito e temos muito para
ensinar àquelas pessoas, vimo-nos embora com o rabo entre as pernas. A única
hipótese é chegar lá com vontade de aprender. Não é nada fácil, mas vale a pena
o esforço.
Ele disse-me outra coisa extraordinária: «Aqui, em África, é preciso elasticidade mental. Uma vez criado esse espírito, tudo nos passa a parecer normal. E então chegamos à Europa e sentimo-nos assustados. Passa a ser a Europa que nos assusta, não África. África passa a ser normal.» Pus-me a reler o Inferno, de Dante, há uns dias, e deparei com um trecho em que Virgílio refere o momento em que o universo sentiu «a concórdia dos elementos», e depois diz que há quem creia que, deste modo, tudo voltou ao caos. Ou seja, o cessar da discórdia, segundo Dante, seria a confusão, o caos. Isto fez-me lembrar as palavras daquele velho padre. Moçambique é um lugar caótico, mas talvez o caos esteja, afinal, na nossa existência aqui no Ocidente, nesta nossa vida regida por uma concórdia postiça, por consensos espúrios que nos fazem aceitar como inevitável uma vida de infelicidade e de angústia para a grande maioria de nós.
3.
Falei nas aventuras, mas toda essa grande viagem
é entrecortada por um grande intimismo, seja ele confessionalismo puro ou
catarse. Disseste na apresentação deste livro que podes usar tudo o que
qualquer pessoa te diga ou conte a “teu favor”. «Tudo o que disser poderá e
será usado contra você no tribunal», como vemos nos filmes americanos.
Impões-te alguns limites nesse campo ou a literatura é mesmo o território da
liberdade e tu o único juiz?
Borges tem um texto magnífico chamado A Cegueira, em que escreve a certa altura: «Ninguém é poeta das oito às doze e das duas às seis. Quem é poeta é-o sempre, e vê-se assaltado pela poesia continuamente.» Ora, quem diz poeta diz romancista. A partir do momento em que decidi escrever, passei a ser assaltado continuamente pela escrita. É um vício terrível, uma droga, em certa medida. Sinto muitas vezes que tenho de me dominar, tento passar algum tempo a conversar com os outros sem que tudo o que me digam seja por mim coligido para uso futuro, mas é difícil. Ou antes, é impossível. O mundo é um lugar fascinante, estão sempre a acontecer coisas debaixo do meu nariz, as pessoas estão sempre a contar-me histórias, estou sempre a ouvir conversas, e tenho a impressão de que, se não agarrar todas essas jóias, elas se vão perder. Tenho muito medo de desperdiçar boas histórias. E depois ainda há a memória e a infância, que são um poço sem fundo. Não consigo deixar de tecer mortalhas, tapeçarias, panejamentos com estes fios que estou sempre a agarrar.
4.
Uma das tuas características mais conhecidas
enquanto tradutor é a investigação e o trabalho de campo, que, em alguns casos,
decides levar a cabo, desde a “reconstituição” de alguns passos do assassinato
de JFK para o Libra, de Don DeLillo, até às viagens à terra natal de
Cormac McCarthy e ao seu Oeste. Nos teus livros, todo esse trabalho detectivesco
surge impresso, muitas vezes passo a passo, faz parte da narrativa desde o
presente até aos tempos remotos da infância. A um nível extremamente preciso,
mas também onírico, muitas vezes feérico, quase fora de controlo. Uma vez disse
para mim mesmo que, se tivesse de usar uma fórmula para a tua escrita, seria
algo do género: Cormac McCarthy + Jack Kerouac. A crueza de McCarthy e o
lirismo de Kerouac. Mas julgo que é redutor, pois já inventaste uma constelação
única. Utilizas todas essas influências ou procuras esquecer tudo – se tal for
possível - e começar de novo?
Os bons livros que lemos marcam-nos, claro. No caso de um tradutor, como eu, os textos que traduzo marcam-me muito mais, porque a tradução implica uma leitura muito atenta, um dissecar da escrita do autor palavra a palavra, frase a frase. Hemingway falava muito do «icebergue do romancista», aquela ideia de que, por cada página que um bom escritor escreve, há outras dez que ficam por escrever. Mas, dizia ele, o leitor repara se essas páginas que não chegaram a ser escritas estão lá ou não. Se não estiverem, elas surgem como buracos na prosa. Parece-me evidente que este icebergue do escritor não é formado somente pelas suas vivências, mas também por tudo o que leu. Portanto, sei que, quando me sento a escrever, mesmo que não estejam à tona de água, o Kerouac que traduzi e o Cormac McCarthy que traduzi estão em mim, fazem parte do meu icebergue.
5.
É ainda evidente na estrutura dos teus romances,
como também em muitos dos artigos que vais publicando nos jornais, uma montagem
que nunca surge “programática” nem simplesmente paralela, mas antes é sempre
surpreendente, ora cortando a direito num momento grave, ora retomando o fio a
outra meada ou tecendo as mais inesperadas rimas e alusões entre os diversos
tempos e espaços. Sabendo que és um cinéfilo, procuras no cinema alguns destes
e de outros processos?
O cinema sempre foi para mim muito importante. Fui uma criança solitária, um adolescente solitário. Nunca tive muitos amigos, era uma pessoa estranha, não conseguia conversar com os outros, dizia piadas de que ninguém se ria, lia livros que ninguém lia. A escola e o liceu foram para mim um longo tormento. A universidade foi outro tormento. O cinema sempre foi uma maneira de fugir dos outros. Metia-me numa sala de cinema, sozinho, sentava-me na plateia, as luzes apagavam-se e, durante uma hora e meia, duas horas, três horas, ninguém me chateava. Se a sala estivesse vazia e eu fosse o único espectador, tanto melhor. Claro que as coisas que aconteciam na tela assumiam proporções avassaladoras. Sonhava com os filmes, metia-me na pele das personagens, imaginava finais alternativos, ramificações da história. Quando gostava de um filme, ia vê-lo duas, três, quatro vezes. Penso que, sem dar por isso, o modo de narrar cinematográfico se meteu em mim. Art Spiegelman diz que a banda desenhada permite fazer coisas que o cinema não consegue fazer, nomeadamente contrapor momentos temporais diferentes em simultâneo, jogar com o tempo e com o espaço de um modo muito ágil. A prosa também o permite, obviamente. Claro que isto são tudo reflexões que faço agora, pondo-me de fora da escrita. No momento em que escrevo, limito-me a escrever, não penso no que vai sair.
6.
Por último, e regressando ao início da conversa,
achas que só se deve escrever sobre aquilo que nos marca e assombra ou é
possível escrever sobre qualquer assunto de um modo pessoal e omnívoro?
Há
escritores fabulosos que não escrevem, pelo menos directamente, acerca dos seus
demónios íntimos. Mario Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, só para citar
dois de que gosto muito. Não me parece legítimo, como já ouvi fazer,
estabelecer uma espécie de hierarquia entre a ficção sem pendor autobiográfico,
como a destes autores, que seria a mais nobre, e a ficção de pendor
autobiográfico (Lobo Antunes, para só citar um dos exemplos maiores na nossa
língua), encarada como uma espécie de parente pobre. Acho que a linha divisória
é outra. Voltamos sempre a Borges, que escreveu: «O encantamento, como disse
Stevenson, é uma das qualidades essenciais que deve ter o escritor. Sem o
encantamento, o resto é inútil.» Respondendo à pergunta, portanto: é possível
escrever sobre qualquer assunto, desde que o escritor e, como tal, o leitor,
sintam o encantamento a envolvê-los. Sem isso, é melhor, de facto, estarmos
quietos e dedicarmo-nos a outra coisa.
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