Nos
idos de 2007 Jorge Cramez estreava a sua primeira-longa metragem. De uma
assentada pagou as dívidas a Nicholas Ray, falou com os abismos românticos de
Camilo Castelo Branco e de Romeu e Julieta e transformou uma suposta
história “real demais” em deambulações oníricas sem desfecho nem moral possíveis.
Há uma parte ingrata neste filme dual, que é a de tentar emular os mestres e os
cânones sedutores num tempo anacrónico e em cenários e contextos que não o
permitem, mas quando tudo se liberta da obrigação de uma narrativa crível,
temos dos mais belos momentos do cinema português. Isto é, universais e verdadeiramente
portugueses, de um romantismo Camiliano. O Capacete Dourado é um conto
(um segredo) de amor silencioso, sem beijos, nem nudez, perfeito, arrancado e
consumido num Paraíso Perdido que a certa altura deixa de ser em Vila Real para
passar para as brumas tateantes da eternidade. Todo o “demasiado reconhecível” desaba
e tudo passa a planar no translúcido das águas clamantes por corpos
desgarrados… pelos bruxuleantes verdes de florestas míticas e logo interditas…
em cima de tenros mas cegantes girassóis e outros amarelos selváticos que
crescem no Éden como no Purgatório. Um cenário etéreo e intangível onde
plenitude e morte se casam sem digladiação.
Mas
algures tombam ainda, ou deixam de importar, os grupos jovens e raivosos de
Nick Ray, os adultos impotentes, os pobres e os ricos, as proibições demasiado
terrenas, as consumições sociais, da cultura, das leis, a narrativa, argumento,
cópia, dívidas, realismo, plot points… lógica. E inicia-se o desfile
fantasmático que já tinha sido vislumbrado, demasiado sem contexto, sem a
gravidade futura, nas motas da morte iniciais: o Danúbio Azul de
Strauss e de Stanley Kubrick a fragmentar corpos e almas, o Pai assustado, e
Eva (Ana Moreira, vinda de um mundo que não este, depois de ver outro?)
espantada, o fogo de um pandemónio e de uma inocência confluentes; Eva a clamar
suicídio e paz ao mesmo tempo, entre vagas silvestres e outros frutos
proibidos, os brilhos também eles demasiado perfeitos e reconfortantes das
águas, atravessando as perspetivas retorcidas (é na pura forma que a influência
de Ray é tocante), os anjos malévolos, chegando à salvação não-pedida; o percurso
de Eva e do seu salvador não-pedido (Eduardo Frazão, sempre melhor no silêncio
fundo, aqui longe de Adão) em cima da mota, em cima da tenra vegetação que
lembra também chamas (mais Camões do que Camilo), sem palavras, quase sem
olhares, e o embate na eletricidade e na luminosidade artificial dos carrinhos
de choque de feira popular, o travelling final sobre o cenário, rampa para a
libertação da perdição; o Par, já a caminho da união, e o negrume a engolir as
luzes da cidade e a reter nos químicos da película o arranhar de uma ave
inidentificável, e depois só verdes extra-pigmentados, amarelados desmaiados, águas
já opacas, cerradas, cifradas, e as sobreimpressões cinemáticas a operaram a
união derradeira; a sequência final só carbura quando um adolescente quer
adormecer uma criança e ambos adormecem, longe do pandemónio, e o Par vai à
vida, na escuridão, regressando Strauss, já sem Kubrick, os fundos a
tornarem-se totalmente abstratos, os reflexos a inverterem-se, e o ponto de
vista da câmara de filmar a deixar a altura humana e a subir para a altura
celestial, de uma outra força gravítica ou espírito inomináveis. Aí, as águas,
os pingos, os brilhos, flamâncias, o fogo-de-artificio, os olhares, Strauss,
fundem-se, e tudo se dissolverá e desaparecerá num dia e num tempo que nunca
saberemos. Mito, lenda, pó. Água.
Entrevista
a Jorge Cramez
Passados mais de quinze
anos, como te recordas agora da tua estreia na longa-metragem? Foi um momento
de felicidade e de plenitude ou sentes que ficaram coisas importantes por
fazer?
Foi, com toda a certeza,
um momento de felicidade e plenitude. Apesar de já ter filmado várias curtas e
de trabalhar no cinema, a realização da primeira longa-metragem foi a
consumação do meu desejo de criança. As minhas mais longínquas memórias estão
associadas a uma sala de cinema. Desde os cinco anos de idade que me lembro de
gostar e de querer fazer filmes. «Se não comeres a sopa, não vais à matiné»,
eram estas as palavras da minha mãe que me faziam comer a sopa. Depois das
matinés vieram as sessões da noite, a Cinemateca, os estudos, os livros… E
finalmente concretizei o meu sonho: realizei filmes e tenho trabalho efetivo no
cinema: como anotador, assistente de realização, montador. Perguntas se “ficaram
coisas importantes por fazer”? Sim, ficam sempre “coisas” importantes por
fazer, “coisas”, ideias, sonhos, que vamos materializando nos projetos
seguintes. E não esquecer que em Portugal trabalhamos num modelo de produção
muito “intricado e complexo”. Querendo com isto dizer que fazemos os filmes com
muito pouco dinheiro e com as consequências que isso traz.
Partilhaste
a escrita do guião com o Rui Catalão e o Carlos Mota. Meteste muita da tua
sensibilidade e das tuas experiências nele ou foi um processo de compreensão de
personagens estranhas a ti e de uma situação real?
Na minha experiência, a história de um
filme é, quase sempre, um enigma. Como é que as histórias vêm ter connosco e
como é que nós vamos à procura delas? Este guião veio ter comigo durante um
jantar e quando trabalhava num outro argumento. Li e gostei. Tinha muito a ver
com o meu imaginário, a minha temática recorrente, o amor. Apesar de ser
inspirado na trágica história verdadeira de dois jovens namorados adolescentes
que cometem um duplo suicídio, estava construído no arquétipo do Romeu e
Julieta. E foi isso que me interessou! Isso e as personagens! O guião
foi-me oferecido e comecei a trabalhar nele. Um guião não é
apenas uma narrativa, é também o “caderno de notas” do realizador, onde anoto
as minhas descrições sobre os planos, o som, a fotografia, a luz, a cor, a
dramaturgia… E tudo isto traduz uma ideia de cinema: “molda” a atmosfera das
cenas e o universo emocional das personagens. O filme é o resultado do meu “museu
imaginário”, de tudo que fui vendo, aprendendo, vivendo, partilhando… A ideia é que as personagens e as histórias,
enquanto as vamos filmando (e desenvolvendo), adquirem uma vida própria,
enigmática. A “prova” deste facto é que os amantes que num pacto de suicídio se
enforcam numa ponte, no meu filme acabam num final feliz. E eu filmei essa
cena, a mais cara no orçamento do filme, mas na montagem percebi que tinha
realizado todo o filme num outro sentido e que eles não podiam escolher a
morte. Eu não os podia matar. Neste filme, esse final, o final do guião e o
final da história verídica, seria um final falso, imposto, e no qual nenhum
espectador ia acreditar. Jota e Margarida decidem-se pela vida e viver no seu
mundo. E foi neste itinerário existencial que, de alguma forma e inconscientemente,
eu os filmei. Esta descoberta foi feita quando montava o filme e está muito,
muito longe do guião.
É óbvia e tocante a influência
de Nicholas Ray tanto na forma do filme como nos sentimentos exacerbados. Além
desse teu mestre confesso, que cineastas com quem trabalhaste te influenciaram
e como?
Esta pergunta precisava de uma muito longa e exaustiva resposta. Trabalhei com a Villaverde, com o César, com o Lopes, com o Botelho, com o Mário Grilo, com a Gil, com o Miguel Gomes, com a Catarina Ruivo, com o Schroeter, com o Quim Leitão e alguns outros. Com todos aprendi muito, sempre, pequenas e grandes coisas. Cada um tinha a sua história do cinema. Alguns ensinaram-me mais sobre o cinema, outros ensinaram-me mais sobre a vida, mas o que mais interessava, sempre, era a relação de cada um deles com os atores, porque o trabalho com os atores é aquilo que mais gosto quando estou a filmar. E quando falo da “construção” de um plano, tanto posso dizer que é influenciado pela Villaverde ou pelo Lopes, como posso dizer que é pelo Nick Ray, ou pelo Cassavetes, ou pelo Dreyer.
Uma
questão que sempre me incomodou um pouco no filme foi perceber que os jovens
daquele grupo saído do Rebel Without a Cause são claramente
Lisboetas. Tanto no sotaque como nos modos, percebemos facilmente que não são
habitantes do norte de Portugal, apesar da espontaneidade e da verdade deles. O
mesmo para os adultos. Mas talvez não seja esse nível de realismo que te
interessou. Pensaste em contratar actores locais?
Sim, esse nível de realismo nunca me interessou, nem no Capacete Dourado, nem em nenhum dos outros meus filmes, como podes comprovar se já os viste. As histórias, os filmes, têm que ser verosímeis e não realistas. Esta história foi filmada em Vila Real, mas podia ter sido filmada em qualquer outra cidade de Portugal. Vila Real foi uma escolha afetiva, é a cidade da minha avó, que foi um dos amores da minha vida, e uma cidade que eu conheço muito bem e onde passei uma grande parte da minha adolescência. No filme, se vires bem, todos os jovens figurantes locais que vemos no Liceu, na festa de anos de Jota, nos jogos das motas, no snooker, na pesca, podiam ser jovens de Lisboa, do Porto ou de outra grande cidade. Tenho a ideia de que, na ficção e não no documentário, quando se trabalha nesse realismo do sotaque e nos modos sociais e culturais, numa certa etnografia para replicar o real, o resultado é, normalmente, de estereótipos e vulgaridades, querendo dizer caricaturas. E sim, pensei em contratar atores locais e fiz um longo casting (uma semana inteira) para algumas personagens, mas foi infrutífero. Bom, não totalmente, porque me ajudou muito na (re)composição de algumas personagens.
A Ana
Moreira está novamente superlativa, para além de qualquer elogio. A sua
fragilidade, a sua perdição, a centelha de esperança que se acende algures
existem para além dos truques dos atores. Não representa, simplesmente existe.
Conta-me como é possível que ela tantas vezes consiga isso, e talvez aqui mais
do que nunca.
Talento, sensibilidade, inteligência, cultura, intuição, amor e muito
suor. No que me diz respeito, tenho uma relação de grande à-vontade, amizade e
cumplicidade com a Ana. Existe algo em comum que é difícil de explicar e que
funciona muito bem em termos de trabalho. Há um entendimento muito bom e feliz.
Conhecemo-nos em 2001 na rodagem do filme Água e Sal da Teresa
Villaverde (eu era anotador) e desde esse momento passamos a partilhar muito
tempo de vida: jantares, filmes, festivais, festas, férias e trabalho. Não é
por acaso que no Capacete Dourado é a Teresa Villaverde, a enfermeira,
que traz a Ana para o filme.
Por último, os teus planos e
movimentos de câmara têm uma espessura, um tempo e uma tensão que vem de um
cinema de outro tempo. Do cinema clássico. Assim como a montagem e a ousadia
sonora. Alguns pensadores atuais falam das dificuldades de fugir a uma espécie de
“lei das imagens”, a esse ruído audiovisual contemporâneo que hoje em dia
escorre pelos mais variados ecrãs e formatos, condicionando a criação livre,
fazendo a maior parte dos filmes e séries parecerem iguais. Pensas nisso
conscientemente quando filmas?
Não, não penso. O meu cinema é exatamente como descreves no início da tua pergunta.
in: https://tribunadocinema.com/entrevista-a-jorge-cramez-o-capacete-dourado/
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