domingo, 7 de junho de 2009


Desde o plano inicial que “Two Lovers” transporta o peso e o cheiro da tragédia. Sempre em crescendo, sempre na mais discreta serenidade – gravíssima serenidade – tudo ao longo do filme nos faz adivinhar que aquilo irá correr muito mal, que as coisas não vão acabar de boa maneira. Já agora, não acabam mesmo bem, parecendo que não, é dos finais mais abertos, incertos e negros que James Gray já filmou. O filme não se fecha, obviamente. Recuando. Qual a história deste filme? A mais simples, a mais conhecida, tal como a metáfora bíblica do anterior “We Own the Night”. Ou seja: um homem instável conhece, num mesmo hiato temporal, duas raparigas, duas amantes, uma delas belíssima e instável, a outra mais secreta, mais comum. A rapariga belíssima e instável gosta de outro e só o quer como amigo. A rapariga “normal” está disposta a dar-lhe tudo. Coisas velhíssimas, clássicas, que Gray vai tratar com aquele minimalismo de prenúncio de tragédia, com aquele simbolismo – cinematográfico sim, mas acima de tudo religioso, místico – que já praticamente ninguém ousa.
Como normalmente acontece, o acaso começa logo de inicio a operar, tanto na tentativa de suicídio interrompida, até à fatal visão da perigosa Michelle (Gwyneth Paltrow), mulher que vestida de negro surge da luz e que para sempre irá marcar Leonard (Joaquin Phoenix, o maior, ponto final.). Irreversivelmente? A paixão por ela é tão instantânea como inevitável, e para ele arrebatadora, Leonard fica logo apanhado pela mulher e por nada deste mundo lhe ousará dizer um não. Já sabemos o que isto significa. De imediato surge o movimento contrário do filme, ou seja, entre interesses financeiros e vontade de estabilidade, Leonard conhece a estável e promissora Sandra (Vinessa Shaw), mulher capaz de garantir auspicioso e seguro futuro. Detalhadamente: a loira é das que têm problemas, até o pai sofreu de doença mental, droga-se fortemente, trata as noites e as discotecas por “tu” e andar com ela é estar sempre ao lado do abismo. A morena é de boas famílias, trabalhadora, possivelmente fiel, com muito amor para dar. Uma não dá garantias, apenas assegura o provisório e as aventuras. A outra certifica segurança e conforto, certamente uma família. E uma das coisas mais notáveis que Gray soube captar é precisamente o estado de comprometimento – e logo de alheamento para absolutamente tudo o resto – com que fica Leonard a cada palavra e a cada repentina mudança de planos de Michelle, criatura quase inexistente porque tratada como visão, coisa terminalmente evanescente e inclassificável, passível de alterar facilmente a cabeça do homem que a ama. E isto têm muito que se lhe diga, pois a forma como Gray vai dispondo estas duas criaturas com problemas - entre os “altos” e os “baixos”, as sombras e a luz, o dentro e o fora, mesmo os amarelados da fotografia, que parecem queimar e dissimular a realidade, e os azulados como que a quererem pôr ordem, mostrar as coisas claramente - envolve sempre as tais ressonâncias místicas, como já referi, bem como certezas de predestinação, de destinos inescapáveis, de forças maiores e misteriosas, que se apoderão fatalmente daquela instabilidade e daquele risco.
Entre muitos, alguns exemplos: a maneira como aquele encontro e aquele diálogo no metro é coberto de sinais negativos, do fora para dentro, até a câmara de Gray nos mostrar o negrume em que estão envoltos os cortantes e sinuosos trilhos do metro (atenção ao diálogo premonitório); até aos fascinantes, e tão imensamente belos como revestidos de uma letal atmosfera, dos encontros que o par inventa nos telhados do prédio comum. Céu rasgadissimo, luz eminentemente “Rembrandt”, brisa nefasta, cidade estranhamente triste, pássaros que voam, muito frio e muitas ideias confusas, o modo como cada um deles entra e sai entre portas, a ficarem em contra-luz, silhuetas perdidas naquele espaço. Coisas destas não se dão ao acaso, mesmo com toda a força e temeridade que este possui. Ou então, a forma surreal como os dois seres comunicam pelas janelas do prédio. Leonard nos baixos, Michelle lá muito no alto, inacessível apesar de parecer todo o contrário, fugidia e irremediavelmente perdida para ele. Ambiguíssima e ao mesmo tempo tão cruel a forma como ela se vai servindo dele e como o vai iludindo, nociva ilusão, como segunda via para aquilo que parece não conseguir agarrar.
Ficarão os registos fotográficos. E é na necessidade que Leonard têm em rapidamente decidir o seu futuro – um negócio empresarial que ele despreza, uma rapariga que só lhe interessa como forma de descompressão e catarse (sexual, sobretudo) das desilusões momentâneas (e a palavra fundamental aqui é “momentâneas”) de Michelle, a disposição para tudo abandonar pelo anjo (ou será o oposto?) que lhe veio do desconhecido – que carrega o filme de um assustador e falso encantamento (as tais ilusões…), de uma tensão e de uma carga de sombrio suspense, até ao mais certo incerto dos finais. Ninguém fica imune a coisas assim e o que acontecerá ficará numa cruel e inadivinhavél elipse. Irreversível? Ao que mandariam as regras da tragédia e os livros – o sangue e a morte no ecrã – Gray preferiu, preciosamente, entregar aqueles seres à sorte e á vida. Desprezo pelas regras e pelas leis, entrega ao incerto e à existência. Peça harmoniosa e aereamente sinfónica, esquizofrenicamente neo-clássica e novelística, Gray abole aqui – como nos seus outros filmes – qualquer décalage entre o que é contado e sentido e o modo de transpor tudo isto para imagens e sons, daí a extrema justeza de tom, o arrepiante compromisso com a matéria do mundo e dos actores – “Two Lovers” é assim legítimo e forte porque dedicado e justo para com aquilo que filma e que capta, com o que está em questão. O que não o impede dos mais furiosos (discretos mas furiosas) e vibrantes rasgos, por exemplo, a cena da discoteca, mais uma vez uma discoteca, em que o cineasta demonstra uma voracidade e uma vitalidade, uma fome mesmo, de captação de ambiências e atmosferas, que a estes níveis e sensações, só Michael Mann anda a par. Câmara pelas estaturas e pelo peso dos homens e das coisas, sons aos níveis do mundo, coisas dessas, coisas fundamenteis. Magnifico.

1 comentário:

João disse...

Excelente análise, já andava cheio de vontade para ler estes teus textos.

Quanto ao filme, Gray consegue-me surprender a cada novo filme, cada vez mais maduro. Um dos melhores filmes deste ano.