O tempo é a ontologia do cinema, o espaço o factor correlativamente determinante. Sendo assim, a câmara pode ser utilizada de várias maneiras. Diria que João Canijo possui um método, mas, desde os seus inícios até a este fortíssimo e impressionante “Mal Nascida”, este já é qualquer coisa de interiorizado e assim desenvolvido pelas suas convicções, não só do cinema, mas da arte dramatúrgica em geral. Na verdade, não só da arte mas da sua especifica visão do mundo. O cinema começou pelo plano sequência, ganhou as suas regras e as suas amarras, apesar (APESAR) de tantos modernismos e de tantos notáveis vagabundos que ousaram quebrar tudo, sempre teve no geral e na produção corrente e industrial, o perigo de cair na ilustração básica, no campo/contra campo pueril e académico, num naturalismo de pacotilha que hoje em dia faz a glória das telenovelas e dos telefilmes que no cinema e transpostos para película passam lamentavelmente por Cinema. Obviamente que todo o cinema clássico e muito do neoclássico, usando as leis, logo as transcendeu para ser outra coisa e todo o contrário daquilo que critico. Falando de Canijo. Tudo no seu cinema lhe interessa, tudo é matéria viva, palpitante, significante. Tudo é corpo orgânico e poroso, substância que exposta à sua luz vibrará por inteiro na impressão da película. Tanto os corpos, a carne bruta e visceral, o sangue e os suores, como as paisagens, as paredes, os tectos, o chão, o visco nas superfícies ou a humidade que encobre a natureza. E dizer isto é ficar sempre aquém, fica por referir todo o resto. Mais, neste tempo e nesta ficção em que o que interessa é a uniformidade, onde o trabalho sobre o quadro e a luz é de falso alisamento e pretensiosa igualdade de todo e qualquer elemento, Canijo dá-nos a ver a rugosidade e as temperaturas de cada objecto que compõe a cena, seja uma garrafa de sumol, as vacas no caminho ou o espelhamento de qualquer superfície. Cada ambiência e cada coisa tem a sua atmosfera e o seu nervo, o cineasta sabe-o perfeitamente. Com tudo o que isto significa e tendo a consciência do falso, Canijo procura a verdade das coisas, a sua, repito, visceralidade.
Daí à maneira como Canijo agarra (literalmente) tudo o que na sua cena acontece. Primordialmente parece-me que o essencial é observar os corpos dos actores a percorrerem os espaços, ou seja, o tempo que eles demoram a realizar os actos nos espaços em que estão inseridos. (Interessando-lhe as forças e os movimentos/correspondências secretas e intimas de todo o visível.) E dito isto, interessa-lhe captar o seu peso, a sua gravidade, a espontaneidade e imprevisibilidade dos gestos, das acções, das reacções, dos olhares, a sua interacção e relação com os elementos cénicos, com os decores, resumidamente, tudo o que constitui a complexidade humana e a sua capacidade de deslumbramento. Por isso é que Canijo não ilustra, despreza o campo/contra campo dos manuais, as regrinhas dramatúrgicas ilusoriamente facilitadoras, o naturalismo risório e sem interpretação (palavras de Canijo) dos “olás” e dos “bons-dias” da ficção corrente, etc. O que faz ele quando a máquina se liga? Inventa uma distância ética e respeitadora em relação às personagens, às suas vibrações e peculiaridades, em relação aos espaços e ao mundo que elas atravessam. A câmara segue e observa, contundentemente, as acções, o bailado humano, esse extraordinário espectáculo do andar e do reagir, algo que já ninguém se lembra de prestar atenção, nem nas artes nem fora delas. Sem qualquer resquício de exibicionismo, jamais a forma se auto-expõe, basta a cena em que Lúcia (Anabela Moreira) vai à casa do seu noivo, e fica trancada num espaço claustrofóbico, para logo a câmara se plantar fixamente e nos reenviar para algo como a dureza do cinema de Pedro Costa. (Muito a câmara se move, sendo assim, parece a mais imóvel das câmaras, a tal justeza.) Corpos que atravessam uma sala e passam para outro compartimento, que ficam e que dele saiem, com a câmara sempre pela sequência, pela espera, pelo retorno, recusando o típico corte que iria observar o que se passa por detrás da outra parede. Pela Duração. Essa extraordinária duração que cada vez mais as imagens de Canijo possuem, essa densidade brutal – ainda mais ampliada pelo trabalho sonoro que desmultiplica camadas – permite sentir o tempo que as coisas realmente demoram a fazer, permite experimentá-lo e contemplá-lo (em certas cenas, à beira do insuportável), bem como uma reformulação urgentíssima e essencial da ontologia primitiva da câmara de filmar. É a violência da forma e a violência do tempo, forma que já é só de Canijo, logo tempo que também só ele assim sabe possuir – experiência animal do mundo que faz com que seja tão feroz assistir a alguém a beber um copo de vinho como a uma cena de esfaqueamento. Assim mesmo.
2 comentários:
Estou perplexo com a qualidade de conteúdo dos teus textos. São, sem dúvida, de uma beleza quase poética. Os meus parabéns!
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"Com tudo o que isto significa e tendo a consciência do falso, Canijo procura a verdade das coisas, a sua, repito, visceralidade."
Concordo com bastante do que aqui transpuseste. Este filme é-me de uma beleza imensa, ímpar. E a atracção abismal na sua desregra está, exactamente, na víscera da condição humana - na sua qualidade corpórea, que, primitivamente, regula as relações entre os corpos. As convenções, as morais, as instituições e os mandamentos são sobreposições artificiais de obrigatoriedade social, reguladora, e transportam em sim a apetência para a transgressão.
Aquela espera foi milenar : a ânsia que uniu, à distância, um corpo ao outro, transgrediu os deveres, as palavras, os cenários próprios a cada um dos irmãos. E a partilha irrefutável do sangue é obsoleta perante tal desejo contraído em uníssono, em amor puro que se supera para lá do tempo e da memória. E o desejo carnal das essência teria de chegar, sem remédio, e de materializar-se e de fundir aqueles seres de sofrimentos.
Canijo foi sublime em fazê-lo. Vi-o perfeito, a decorrer sob o presságio já entregue pelo título, com toda a angústia e claustrofobia que prepara a intensidade para o culminar trágico.
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