«Farsa perpétua! A inocência dar-me-ia lágrimas. A vida é uma farsa com papéis para todos»
Rimbaud
Dois impressionantes filmes de John Ford vistos recentemente trouxeram-me, como sempre, uma série de coisas, de questões. Só à primeira vista serão dois filmes atípicos de Ford , três até, mais... "The Hurricane" e "The Prisoner of Shark Island" são histórias em que o protagonista se encontra preso injustamente, condenado, mas tragédia das tragédias ou fatalidade, a natureza libertária deles - muito mais em Hurricane - jamais os farão aceitar tal estado. O Jon Hall de Hurricane é como Rory Calhoun, o Gaucho de Tourneur, ou esse Kirk Douglas da mesma familia no "Man Without a Star " de King Vidor, o que odeia as cercas de metal e no corpo as tem marcadas para sempre. Tem o ar e o sopro indomável do vento e a água e o fogo e o desejo de tudo sentir tudo percorrer tudo viver amar no sangue. Ficar encurralado é o seu fim e irá até ao fim do mundo e dos sacrifícios para se desamarrar. Custe o que custar, quantas vezes forem precisas. Sangue derramado, que importa... Rimbaud, sempre Rimbaud o andante. Os livres contra os instituídos, a selva contra a lei, o animal contra o “civilizado”. Espaço sagrado que urge manter contra o espaço opressor que é preciso estilhaçar. Obras de resistência a rótulos ou a gêneros – assim são os grandes - poderiam ser chamados thrillers pelos ávidos dos engavetamentos ou pelos académicos da mais indizivél das artes ou dos jornalistas de cannes que têm que enviar a página para o dia seguinte. Porque se há efectivamente acontecimentos narrativos, arquetipos até, personagens e velocidades que depois os chamados mestres da acção e do espectáculo iriam banalizar e estupidificar até ao insuportável e ao rizível, dizendo-se herdeiros, esses judas que dizem entregar à plateia o que elas querem. Um pouco banal e desistimulante quando contado, sumptuoso quando visto na imensa sala. Numa grande produção de Samuel Goldwyn, filme catástrofe desejado para o monumental e o circo, o que fica são corpos maciços e graciosos e desejáveis e volupteis, vontades, paixões e intimismo. E, claro, o esplendor da criação e das suas manifestações. Ford é obviamente doutra dimensão, de outro saber e de outra graça. Mão de aço e delicadeza de poeta pintor. Filme de belezas e inocências incandescentes do lado do seu amigo Hawks de "Today we live", aqueles belos passeios e amores sem nome, aqueles paraísos perdidos onde tudo é ainda possível e nada foi ainda corrompido. Adão e Eva. Tal como as subidas nietzscheanas e transformadoras do "Sargento York" aos cimos das montanhas que com o céu correspondem. Desconfio que é nesse nublado nesse meio caminho entre terra e etéreo que tudo pode ser claramente visto. A questão é que ali, naquela ilha e naquelas águas palmeiras sol e o resto, não há lugar para a farsa e os nativos-crianças só nisso sabem viver. Ford também não conhecia os truques e os códigos e se os sabia – e sabia concerteza – só do mundo porque homem do mundo se utilizava, mundo dos homens e mundo original, mesma coisa, imagens e sons. Mais nada que não um filme que só pelo real e pela poesia transfiguradora pelos sentimentos equidade esse amor a certos seres e certas coisas nos mostra e faz sentir tudo o que necessário é nesta terra. Violência, ternura, apocalipse, erotismo, acalmia, utopias, esperanças, sacrificios, romantismo, fé.
"The Prisoner of Shark Island" é parecido, à superfície, muito à superfície, com os tais action movies de evasão que hoje em dia a máquina hollyoodiana ou mesmo os autores respeitáveis tentam fabricar com tanto barulho que chega a ser tristemente cómico, mas o que temos em Ford é a profundeza e a implacabilidade da verdade contra a máquina trituradora da falsa justiça e da mentira. Tudo se reverte passado o calvário, mas o traço memória fica. E Ford chega ao transcendental pois a angelical e terrível luminosidade daquele meio está em compromisso de sangue com Warner Baxter, o doutor que caiu em desgraça e que nada de mal fez, aliança-luz contra os criminosos, aliança-luz contra os que do cinema se servem como brinquedo ou, muitas das vezes pior, como audiovisual. Luz-guia. Luz-desbloqueadora. A mesma força poética que o Condenado de Bresson. Não há quem os pare, aos nobres e aos de bom coração, esses perdidos de amor, desprendidos, conciência em paz. As grades arrebentam-se, os polícias tombam-se, os tubarões vergam-se, o mar encurta-se como se encurtava e se vencia na sequência do outro mundo em que o Jon Hall de Hurricane atravessava todas as forças circundantes porque se sabia amado e com razão, momento irmão do “Tabu” de Murnau e de Flaherty, a incontrolavél e vulcânica furia da natureza domada com a força interior essa chama unica do amor pela vida todas as promessas .
Falei num terceiro, lembrava-me de "The Informer", essa espécie de menino-gigante vivido pelo tocante Victor McLaglen, tudo muito simples, tudo extremamente complexo. McLaglen, o que diziam não ter cérebro mas só músculos, o bêbado, tem imenso carinho por uma bela e o vislumbramento do abismo e da perda fá-lo tremer e trair o amigo. Denuncia-o e ganha muito dinheiro e muitos sonhos. Engano, são os pesadelos que irrompem. Faz sem a consciência do acto e fica emocionalmente estilhaçado. Arrependido até aos ossos. Mais um filme-luz, essa luz divina como o “Hurricane” ou o "The Long Voyage Home", essa luz que dos altos brota e queima e só pode querer dizer qualquer coisa da ordem dos mais profundos mistérios de tudo isto, maquetes-mundo ou mundo-maquetes cerração vibração deste eterno que nos ultrapassa, ou...É preciso muita generosidade para acolher assim um homem e para o compreender, quem vir nisto mais um filme de fugitivos, action... é porque nunca viu a vida amor pela mulher o cinema. Claramente ou escuramente insondavél.
Não há género pois as dialécticas e os embates: leis-libertos, místicos-políticos políticos, amor-frieza e a singularidade de cada homem em fundo com o aprisionavel mundo esse destino, leva os filmes para o terreno da vida logo questão vital. Última adenda: será “Steamboat Round the Bend “, um dos cúmulos de todas as artes, um filme sobre corridas de barcos? Panfleto humanista? Jamais...é o supremo elogio às maravilhas liquidas e às suas envolvências, ao glorioso mississipi simbolo de todas as águas e de tantos heróis, navegantes, capitães e lobos dos mares, ode às imperiais máquinas que as atravessam, num maravilhoso que vai de Grifith a Walsh ou Tourneur, Lord Jim, Julio Verne, ou aos grandes pintores idilicos de tudo isso, Manet, Corot, Wyeth.
Oposto horrendo de tudo ou quase tudo o que hoje se faz, em que reinam os efeitos sobre o que originalmente existe, onde a cinefilia atrocida a carne e o suor e as veias, onde as superfícies e as linguagens aniquiliam uma arte onde todas as possibilidades, qual Griffith qual Murnau Ford, estão em aberto esse cinematógrafo ávido para que assim o utilizem. A verdadeira ilha de Hurricane hoje erguer-se-ia às mãos de um geniozinho engenheiro de informática; Ao erotismo daqueles corpos em que rasgos carnais se entrevêem, a nudez pornográfica do tudo; À fisicalidade que nos estoura pelo olhos, esses mesmos rostos e corpos embelezados pela publicidade. Aos timings e à duração sufocante, a montagem milésimos de segundos “eu sou o maior”; aos nevoeiros místicos essa luz quimérica procurada na paciência e na crença, os efeitos premiére automáticos; ao tempo de cada coisa per si, o digital de aceleração; ao hipnotismo dos desertos de "The Lost Patrol", filtros e mais filtros. A homens H grande, bonecos digitais. Ao plano fixo atordoante ou sereno que persiste e revela, a dispersão inconsciente das gramáticas das escolas de cinema ou da contaminação televisiva. À cristalina legibilidade, contemplação, presença, pressão, a masturbação dos zooms esse atrofio que tudo quer penetrar. À justa distância e à multiplicidade de modulações, a excitação de querer estar sempre por cima e numa uniformidade higienizada. À aspiração museu, a aspiração taberna. Dramaturgias e sinuosidades e linhas quebradas esqueçidas pelas acumulações de climaxs ou de "acontecimentos criativos" desenhados pelos criativos.
O panteísmo esses arcaismos contra os ecrãs de computador plasmados nas outrora magníficas telas. À vida de todos e aos deconheçidos zonas escuras medonhas raridades, o aconchego da rotina e do sofá.À câmara para o homem, a câmara para o "actor". Às explorações e às aventuras e aos altos baixos, a cadência e a lógica idiota dos argumentistas. Ao vento nas árvores, o vento brilhante no cabelo das stars. Aos olhares fixos ou profundos ou perdidos, os olhares nada essa improvisação nada cumprimento de horários. Às elipses e aos inimagináveis, a linha recta ou a fragmentação pastilha elástica fogo de vista. À 40 anos, 50 anos, 60 anos, 70 anos...mais, já Ford nessa depuração e nessa desmesura pictórica e sonora limpava a estrumeira que há decadas invade as peliculas e consequentemente todos nós.
“Faz um movimento de câmara como se rezasses uma oração”, palavra de Godard. John Ford – quadros, composições, texturas, esse orgânico esses brilhos. Orações. Silêncios e comoções.
Penso num cineasta que muito admiro, Martin Scorsese, cujo "Shutter Island", para além de um museu de cera onde nada realmente mexe, nada mesmo, nem um cigarro, mesmo com os esgares e os esforços de um actor tão potencialmente acossado como Leonardo Di Caprio, só através de um impressionismo formal, uma vaidade, uma auto genialidade de mise-en-scène, de um barroquismo gritado e falso ou de recursos a efeitos especiais plásticos e feios, longe de qualquer artesanalismo, consegue parecer o que não é. Pode encher o olho, jamais a alma. Fala-nos de coisas parecidas com os filmes citados, mas ao contrário desses está orgulhosamente protegido pelo género e pelas convenções e pelo convencimento, sem vontade nenhuma de os fazer explodir. Pense-se ainda em filmes de Fuller, como "Shock Corridor", e acho que estamos conversados. Filme de cinema no pior dos sentidos, festival de cinefilia e de sinais mil vezes utilizados, essa consciência. Só os truques ficam.
Thrillers, action, adventure, movies... suspense, cataclismos. Filmes menores porque temas menores? Nada de menor quando se capta esses sentimentos esse todo assim. Ford como Hitchcock como Walsh Hawks, tantos outros, tudo tocaram todas as direcções, todos os trilhos as vidas de todos nós. Cinema total quantas vezes totalmente sem rumo porque ao nosso lado, do lado da cadeira em que a luz passa por cima de nós e se vive nesses magnificos ecrãs.
4 comentários:
Vi o "The Informer" recentemente na cinemateca. Os outros dois ainda não vi.
Que belo blog que tens aqui, um dos melhores da blogosfera nacional.
Por falar na força poética de Bresson pode-se falar também na crueza de Jacques Becker em "Le Trou", onde, não obstante, o dito homem inocente (ou neste filme, o menos corrompido) acaba por se auto-corromper nas cenas finais.
Não percebi a comparação com o Fuller. Surgiu no texto como mais um exemplo do que Scorsese fez ou era precisamente o contrário? Creio que se havia coisa que o Fuller não fazia era camuflar os seus filmes com qualquer tipo de truques.
Comparação com o Scorsese, claro. Abraço.
18507Bom dia. Sou Sergio de SC.
Faz muito anos que procuro por um filme apresentado pela Bandeirantes (creio), onde um homem em fuga encontra uma menina que insiste em segui-lo. Me parece que em uma cena eles tem que pular de uma ponte férrea... Acredito que seja, mais ou menos, de 1925. Uma vaga lembrança me diz que o filme se intitula: "Destino-aventura".
Muito, muito obrigado !
Enviar um comentário