Bird of Paradise, 1932
"Desde o genérico, que nos são dadas a dinâmica e a respiração de "Moonfleet". Surge uma onda num penhasco, enrola-se e depois desfaz-se contra as rochas, e dela apenas resta um turbilhão de espuma. No segundo, terceiro, quarto planos, etc, as ondas sucedem-se, sobrepõem-se, plenas de uma violência contida, por se desfazerem, enfim, com furor. Por que razões estes planos do mar e das ondas são os mais belos alguma vez filmados? Mistério inexplicável da arte, excepto se admitirmos que o olhar do poeta pode penetrar o mundo tão intensamente que torna magnífico tudo o que vê. A poesia reside na verdade e no conhecimento."
Jean Douchet, Cahiers du Cinema, Maio 1960
"O cinema tenta agarrar, no instante, os instantes da verdade. É assim que um filme se faz. O resto é só uma questão de olhar sobre a vida e as pessoas"
Nicholas Ray
Temos aqui a história mais clássica e mais simples, a de um homem que descobre o que há muito desejava ou não imaginava que existia, o ser feito mulher de corpo inteiro que vale uma vida. Depois é o incompreensível e o inaceitável e o absurdo das tradições e das crenças e do mal indissociável ao homem que vai orquestrar e precipitar a tragédia. Mas o que seria política no puro sentido ou exotismo de pacotilha para os medíocres é, com King Vidor, um apelo e um poema ao encontro do mais insondável e estarrecedor telurismo com a força aguda do amor. Sem separações nem cortes. Uno e orgânico.
Como "Tabu", como "The Hurricane", "Bird of Paradise" pode ser o filme mais belo do mundo, aquele em que todos os elementos fílmicos e da natureza surgem no cúmulo da pureza, cristalinos, feitos graça.
O modo como a máquina que filma se põe em perigo logo de início nas águas e o modo impassível como daí para a frente agarra e contempla os milagres da criação. O segredo disto não está no mundo em que Vidor se planta, ou não estará completamente, sim na forma como se vê esse mundo e como dele se extrai a poesia e se lhe reconhece e devolve o génio. Como se escolhe o ângulo onde a luz incide em esplendor como em mais nenhum dos ângulos bem como a distância de onde o magnânimo do que está defronte da lente surge no mais alto grau da sua imponência e beleza. Como os grandes pintores paisagísticos – verdadeiramente paisagísticos – ou como os grandes pintores da ardência e fogosidade, que para o caso é a mesma coisa, ou como Murnau (Cinema+Pintura / Cinema, Pintura), a questão está em apanhar e captar a vida inerente e interior de todas as coisas, de cada detalhe – um charco de água ou uma lagoa, a ponta de um ramo húmido ou uma lua cheia que se volve meia – e não a simples ilustração bilhete-postal ou moldura do que tão agradável à vista é. Como eles, os grandes, conseguem isso? Nunca saberei.
Se em "The Champ", imediatamente anterior, tudo reluzia mesmo no negrume, aqui temos o mal em abstracto e assustador e a constatação que tantas vezes só escondidos para a felicidade se encontrar.
E o sublime é atingido a cada momento sem a introdução de sinais ou de aparências perto da obscenidade ou do mau gosto, sem recorrências ou toques filosóficos, sublime como máximo de emoção.
Realismo físico? Estilização poética? Realismo poético? Podem-me dar mil razões que vou continuar a duvidar do que isto seja.
Momentos de arrebatamento:
- A chegada dos intrusos à ilha, a contraluz dos nativos em observação e a felicidade com que estes descobrem os brinquedos oferecidos.
- Joel McCrea a roubar Dolores del Rio (para sempre a índia de "The Fugitive" de John Ford) aos reis e aos prometidos, na escuridão total, seta que rasga a noite rio fora.
- Os bailados sedutores e carnais dos rituais da tribo e os bailados dos barcos. Ainda o outro bailado no fundo dos mares entre ele e ela, suprema elegância dos movimentos. Um dos topos do erotismo segundo Vidor.
- Já na ilha de todas as promessas, as subidas pelos rios e cataratas acima, onde se banham e provam da água, e o momento em que fazem projectos de construir casa e a chuva irrompe – mais uma vez, só a visão do poeta pode assim animar o que julgaríamos certo e outro patamar atingir. Uma coisa que é já outra coisa.
- A longa subida de McCrea aos cocos.
- Cataratas que brotam água que é esperma como esperma parece brotar dos cocos que eles devoram antes ou depois de se devorarem dentro de campo ou nas misteriosas elipses. Como em "Ruby Gentry", a vontade e o suor estão inundados nos corpos e o acto consumado surge metaforicamente, ou se quisermos literalmente, no meio envolvente e nos seus órgãos Tudo é ânsia.
- Os rios de lava já muito negros e espessos que o descobrem sozinho e subitamente impotente. Contraponto: a explosão vulcânica furiosa. Pendurado numa corda sobre o precipício em chamas, qual Tarzan, portentoso símbolo fálico.
- As subidas aos topos das montanhas e a imensidão à Friedrich, o pintor, que os engole.
- Os dois cravados na cruz da punição, e del Rio a agradecer-lhe por ele a ter ensinado a amar.
- As brincadeiras aquáticas de McCrea com a tartaruga de proporções fora do normal. Crianças entre monstros de soslaio.
- Um fala uma língua, o outro fala outra absolutamente diferente, e a invenção de uma nova língua que se canta e harmoniza e que assim só a eles pertence.
- Na caça aos peixes voadores ela puxa-lhe pelo barco, ele solta uns sons da guitarra, ela deita-o num trono de rosas e o resto é mais do que sabido...
- As sequências a dois na ilha-paraíso onde rigorosamente nada se passa, a não ser uma esfuziante alegria, pulos, cambalhotas, sorrisos, foguetes fogos-de-artifício, beijos e carinhos sem nome. Reflexos, brilhos, transparências. Ou seja, tudo se passa e essa é aquela narrativa, ou, como diriam os grandes "especialistas", a sua estrutura narrativa.
- Como em outros filmes de Vidor, o apagamento final, seco e silencioso de McCrea.
- O plano final: del Rio em sobreposição ao fogo e o vulcão que surge como contra campo, magnífico e significativo corte, genuina montagem – maldição e fatalidade.
A câmara como aparelho científica de alta precisão; a luz como matéria modulável; o imponderável que pode acontecer de alguma forma e perpassar uma qualquer vertigem; o olhar do artista como transcendência de tudo o resto.
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